A dama do ballet

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Movimentos suaves, contínuos e que sempre impressionam pela leveza e o grande grau de dificuldade. O ballet conquista cada vez mais espaço no gosto do público e já é tradição de meninas e meninos por todo o país em se enveredarem por esse estilo tão belo e clássico de dança. E foi durante uma apresentação de ballet que Hulda Bittencourt se identificou com a dança quando ainda era criança e resolveu que não queria outro destino para sua vida. Aprendeu a dançar, virou professora e com a ajuda de seu marido criou sua escola. Foi quando um grupo de alunos da USP chegou para aprender com ela que surgiu a Companhia de Dança Cisne Negro. 35 anos depois, Hulda e sua equipe preparam muitas coisas para comemoraram todo esse sucesso, que inclui apresentação no Teatro Municipal e um livro sobre a história da cia. Nascida na Vila Madalena, foi aqui no bairro que sua história começou e foi parar nos quatro cantos do mundo, com apresentações e ex-alunos em vários países.

Como começou sua história com a dança?
Desde criança eu queria ser artista, nem sabia para qual ramo eu queria ir, mas alguma coisa eu queria fazer. Na escola eu sempre me oferecia para dançar, recitar, cantar, fazer alguma coisa, queria era aparecer. Os professores até brincavam que eu deveria chamar Aparecida, de tanto que eu queria aparecer. Eu morava na Vila Madalena e tinha no Sumaré, na TV Tupi, um programa de criança que elas iam para cantar. O maestro me perguntou o que eu sabia fazer. E eu resolvi cantar. Minha mãe tinha me ensinado uma música – ela era afinadíssima. Ele disse que estava bonitinha mas perguntou se eu não sabia recitar. Na próxima semana voltei com uma poesia, que era longa. E vi que ele não amou de paixão, por que também não era minha área. E assim foi, experimentando, até descobrir que era a dança que eu queria e gostava. Só que dança naquela época, principalmente para o meu pai, era uma coisa primitiva, de boate. E eu tive que provar para ele que dança não era aquilo, que era uma coisa sublime, uma arte muito pura. Só fui ter oportunidade quando cheguei ao ginásio. Eu estudava no Eduardo Prado e lá tinha uma professora que tinha uma filha bailarina do Municipal. E essa professora, que também tinha uma veia artística, ensinava para a gente o que aprendia com a filha. E eu já fui me encantando com isso. Quando ela fez uma festa de fim de ano, eu cheguei a ver a filha dela dançando e aí enlouqueci. Eu falei que era isso que eu queria. Comecei a procurar, passei por várias professoras até cair Maria Oleneva, que foi quem fundou a dança no país. Aí que eu fui descobrir a dança verdadeira, como ela deveria ser. Quando eu já estava bem melhorzinha, a Oleneva descobriu que eu tinha grande dificuldade financeira, ela me indicou para uma serie de escolas para eu trabalhar e ganhar dinheiro para poder me sustentar, comprar sapatilhas, enfim, para seguir o que eu queria. Teve uma escola em Taubaté que tinha 10 alunas, e na outra semana tinha 20, na outra tinha 50… Tinha que mandar bordar os nomes das crianças porque eu era incapaz de memorizar o nome de todo mundo de tantas meninas que eu tinha. Fui me aperfeiçoando, estudando, fui para o exterior várias vezes e levei a sério porque era isso mesmo que eu queria, que eu gostava. Formei muitas bailarinas. E meu marido, vendo minha dedicação, logo fez para mim um salão no fundo da minha casa. E transbordou de alunas, já não podia ficar mais lá. Daí eu fui para a Rua dos Macunis. Aí era o Alto de Pinheiros inteiro e São Paulo que vinha porque eu trabalhava com tanto carinho, com tanta dedicação, que a escola foi crescendo.

Foi aí que nasceu a cia. de dança?
Sim. Nisso chegaram os atletas da USP para dançar. Eu nunca tinha trabalhado com homens, nunca nem sonhado. E aquele monte de homens bonitos e altos, com corpos lindos e que queriam dançar. Tinha um da natação, do vôlei, do atletismo… E cada dia vinham mais homens, mas todos diferentes uns dos outros de musculatura. Eles eram tão esforçados… Aí eu estorei na mídia com uma companhia de homens e algumas meninas da escola. Comecei a chamar alguns criadores, coreógrafos, já que eu não sabia criar para um grupo tão heterogêneo. Enfim… A coisa foi crescendo, crescendo, e daqui a pouco já estávamos no Brasil inteiro, no exterior e fiquei com uma companhia na mão que me orgulho até hoje. Eu não tinha nenhuma ambição de ter uma companhia de dança. Aconteceu por causa dos atletas.

A senhora nunca teve vontade de sair dessa região?
Não. Praticamente nasci na Vila Madalena. Morava na Purpurina na época que eu queria ser artista e onde foram minhas primeiras experiências. De lá passei para a Coropés, quando casei, depois passei para a Macunis. Meu marido, vendo toda a minha paixão, investiu aqui e fez esse prédio que foi o primeiro prédio próprio para dança em São Paulo. Estamos aqui há cerca de 35 anos. Já no começo viemos para cá.

Quais estilos vocês têm aqui?
Além do ballet, temos dança contemporânea, grupos para senhoras, para adultos, crianças…

Entre os vários espetáculos realizados pela companhia, um que já virou tradição em São Paulo é “O Quebra Nozes”.
“O Quebra Nozes” já tem mais de 20 anos. Eu fiz para comemorar um aniversário da escola. E fiz com todo carinho, capricho, fiz com um cenógrafo que era no Municipal. E montei com o pessoal da escola e alguns rapazes que eu contratei na época. Para minha surpresa, chegaram para mim e falaram que eu tinha ganhado o premio APCA pelo “O Quebra Nozes”. Nem tinha acreditado que tinha ganhado como melhor espetáculo do ano. Foi ótimo. E daí a coisa começou a caminhar, começaram a surgir convites, as possibilidades e “O Quebra Nozes” virou eterno. E é sucesso absoluto aqui e em qualquer cidade. Ano passado, dançamos dentro da piscina do Clube Paulistano, na porta do Estádio do Pacaembu e ainda seguimos com toda a temporada do Teatro Alfa. O público espera, quer ver, quer sonhar, quer viajar. É o único clássico que eu faço. Ele tem todo um tratamento mais contemporâneo, mas sigo a regra do ballet clássico que é levado no mundo inteiro no Natal. E é uma historia totalmente atemporal. Então faz sucesso sempre. E sinto prazer em fazer. Não tenho o elenco completo, então quando chega agosto, faço uma audição e vem gente de todo quanto é lugar: da Argentina, do Chile, até da Áustria já veio gente para dançar nosso “O Quebra Nozes”.

Além do premio APCA, quais outros a senhora já ganhou?
Já ganhei vários, mas o APCA sempre foi o mais importante. Mas já foram muitas homenagens, aqui e no exterior. Esse ano recebi uma homenagem em Manaus (AM). Isso é muito gostoso porque é respeito ao trabalho que está sendo feito.

Vocês têm trabalhos sociais?
Temos vários. Temos em uma escola pública aqui no bairro. Tínhamos um no Jabaquara que promete voltar. E em cada lugar desse país e fora do país que montamos, sempre temos um professor dedicado com a comunidade, com projetos sociais locais. Acho que é importante. E temos dois trabalhos em continuidade: um é sobre a sustentabilidade e outro é o “Vem Dançar”, que está há mais de 20 anos em cartaz e ensina a história da dança. É um ballet cômico, divertido, que ensina de uma maneira moderna.

O ballet por um lado tem uma coisa meio elitista, com o luxo dos teatros, mas por outro ele está muito presente nas comunidades carentes.
Em todo lugar. E ainda é pouco que se faz. Agora, por exemplo, tem um bailarino nosso que estava conosco há 10 anos, e estava na hora de começar outra coisa e ele está em Corumbá (MS) em um projeto social só com homens.

E o que a dança representa para essas pessoas?
Muito! Eles se comunicam, se divertem, e de lá saem tantos bailarinos… Tenho um menino que veio para cá com 14 anos e é um dos melhores daqui.

O Brasil é um polo exportador de bailarinos?
O bailarino brasileiro nasce com a dança no corpo. É uma coisa categoricamente que é assim. Aqui tem talento aos montes, esparramado no mundo inteiro.

O ballet está mais famoso?
Acho que cada vez cresce mais o número de pessoas que procuram ver a dança, conhecer a dança, enfim, temos um público maior. Mas assim mesmo acho que deveria ter mais divulgação, mais tour pelas escolas. Ainda pode ter muito mais. O brasileiro adora dançar, tem ritmo, já nasceu com ritmo. Existe lugares por aí que ainda podemos alavancar esses valores. Falta muito incentivo do governo para incentivar a dança. É muito difícil. A última coisa que eles pensam é a dança. Tem muitas possibilidades de projetos serem adotados, mas realmente nem sempre o apoio vem quando precisa. É uma profissão!

Hoje é muito difícil viver só da dança?
Olha a gente aqui da companhia hoje vive de dança. Todo mundo tem salário, todo apoio de saúde, sua porcentagem por espetáculo.

Para dançar ballet é preciso ter muita dedicação?
Total! Tem que ter o físico. O ideal é que se comece por volta dos sete anos. Mas precisa ter o físico, tem que gostar muito, ter muita disciplina, porque é duro para quem quer ser bailarino. Quem está só para ser bonitinho, pra ficar melhor, ficar mais delicado, é uma coisa. Agora para se profissionalizar é preciso de muito trabalho e esforço.

E o que é indispensável para um dançarino?
Disciplina. E amar a dança.

E o que a senhora espera do futuro da Cisne Negro?
Eu espero que as organizações culturais desse pais abram um pouco mais os olhos e vejam os talentos que temos. O que temos no exterior de brasileiros brilhando, arrasando… Mas são pouquíssimos que conseguem estudar com bolsa. É muito difícil estudar nesse país.

Quais espetáculos vocês estão programando para comemorar os 35 anos?
Agora estamos fazendo uma apresentação pelo Brasil que é um “clip” dos 35 anos em que eu vou mostrar trechos de alguns do ballets que marcaram as épocas e faço um de cada ano. Mostramos em todos os lugares. E é muito interessante porque nem todo mundo conhece a nossa história.

E 35 anos depois, a senhora continua no centro de tudo isso…
Não sei como, mas estou! (risos) Eu não fico mais longe da dança. Minha família está na dança. Minha filha é professora e assistente, a outra mais velha dirige a escola. E as três trabalham muito. Porque não dá para ser diferente. É muito trabalho, mas é bom. Não faria outra coisa na vida. Acho que o importante na vida é você saber o que você quer, o que você gosta e entrar de cabeça. Não tem mistério.

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