O menino que virou chef

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Nascido em um bairro pobre da periferia de Recife, Caio Henri teve uma vida bem agitada e cheia de aventuras, incluindo várias fugas de casa que o levaram a descobrir o Brasil e depois o mundo com muita persistência e coragem. Foi interno da Febem em Recife e São Paulo. Os primeiros contatos com a cozinha foram através da mãe e depois foi aprimorando sua técnica em escolas e cursos e pelos inúmeros restaurantes – dos populares aos mais requintados – em que trabalhou. Viveu na Europa trabalhando como cozinheiro e, ao voltar para o Brasil, foi convidado para ser chef de cozinha do Palácio do Planalto por três anos, onde serviu o presidente Lula e ministros, incluindo Dilma Roussef. Em 2010, abriu o Las Favas Contadas, charmoso restaurante da Vila Madalena em sociedade com o advogado José Henrique Manzatto. Nesta conversa, Caio Henri fala de sua vida, de gastronomia, da Vila Madalena e dos tempos de Palácio do Planalto.
 
Conte um pouco de sua vida.
Nasci em Recife. Sou o caçula de uma família de quatro filhos. Minha casa era uma casa de sapé e não tinha luz, fogão ou geladeira. Não tinha nada! Só conheci fogão aos 8 anos. E como morávamos próximo dos rios Capibaribe e Beberibe, as enchentes eram frequentes. Não era fácil.
Como você se tornou um chef de cozinha?
Com muita perseverança. 
 
Você aprendeu a cozinhar com a sua mãe?
Sim. Ela trabalhava em uma casa de família de classe média alta e lá ela cozinhava e eu sempre ia para lá para fazer companhia para um dos filhos da família que tinha a minha idade. Mas na nossa casa era mais interessante porque era diferente. E só eu entre os quatro filhos teve interesse em aprender a cozinhar. Cozinhava para ajudar a minha mãe. E sempre estava fazendo alguma coisa. E nem sempre dava certo. Meu pai e meus irmãos gostavam quando a comida era feita por mim.
 
Você teve uma infância difícil. Conte como foi esse tempo.
Com uns 9 anos, resolvi sair da favela onde a gente morava. Era barra pesada. Eu queria sair de lá. Um dia, juntei minhas coisas, fui até a Rodoviária e comprei uma passagem para Natal (RN) para visitar uma amiga. Era novo mas já era grande. Lá passei alguns meses até meu pai ir me buscar. Quando cheguei em casa, apanhei por causa disso e, no dia seguinte, fugi novamente. Fui para a estrada e uma família de Feira de Santana (BA) me deu carona e acabei ficando com eles alguns anos. Era bem tratado e também cozinhava alguma coisa. Tinha incentivo deles e fazia doces.
 
E sua família de Recife não o procurou mais?
Não vieram atrás. Quando voltei para Recife, não fui para a casa dos meus pais. Vivi na rua. Fui parar na Febem de Recife onde fiquei três meses. E acabei sendo levado de volta para a casa dos meus pais.
 
Tantas fugas. Era rebeldia ou vontade de conhecer o mundo?
Eu não podia ver um mapa que sentia vontade de viajar. Viajei o Nordeste inteiro na cara e na coragem. Em 1982, resolvi ir para o Rio de Janeiro, mais precisamente para Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde tinha uma família que era muito amiga da minha família de Feira de Santana. Lá fui vender peixe na rua. E como eu era garoto e era um local barra pesada, peguei minhas coisas e fui para São Paulo. Aqui no Terminal Tietê não sabia para onde ir. Uns policiais me encaminharam para a Febem. 
 
Como era a vida na Febem em São Paulo?
Era muito ocioso. Ficava o dia todo sem ter o que fazer. A única coisa que gostava era fazer ginástica. E numa das vezes que estava sendo recambiado para Recife, quando chegamos em Salvador, consegui fugir e voltei para São Paulo. Como não tinha onde ir, fui para Febem, mas eles não quiseram me abrigar. Eu estava chorando e apareceu o Padre Julio Lancelotti, da Pastoral do Menor, e me levou para um projeto chamado Crianças de Rua, na Vila Maria. Acabei ficando até a maioridade. Foi lá que comecei a aprender a cozinhar. Cheguei a cozinhar para 270 pessoas, internos e funcionários.
 
Foi aí que você aprendeu as técnicas de cozinha?
Não. Antes fui trabalhar como auxiliar administrativo em um instituto. Um amigo me indicou um curso rápido de hotelaria e era gratuito. Achei legal e fiz o curso de cozinheiro iniciante. Seis meses depois, consegui um emprego em um restaurante. Tempos depois, fiz outro curso, de cozinheiro internacional. Estagiei no Terraço Itália e trabalhei m outros restaurantes menores. Até que resolvi ir para Belém do Pará. Acabei ficando morando com uma família que depois veio comigo para São Paulo.
 
E como foi parar no exterior?
Fui de férias para o Rio de Janeiro e resolvi procurar emprego. Havia uma vaga para trabalhar em Israel. Fiz a ficha e depois de passar por entrevista, fui contratado. Voltei para Belém e deixei o meu emprego. Fui para Israel via Lisboa. Na Europa, perdi o voo para Israel. Quando cheguei em Tel Aviv, a polícia não me autorizou a entrar. Achavam que eu não era brasileiro, era árabe. Eu não falava nem inglês e muito menos hebraico. Acabei sendo colocado em um voo para Zurique, na Suíça. De lá, a empresa que estava trabalhando me enviou para Estocolmo, na Suécia. Depois fui para Lisboa e também por outras cidades pela Europa.
 
Quando foi a volta para o Brasil?
Em 1997, voltei para o Brasil. Fui para o Pará e montei uma cachaçaria em Marabá e um restaurante em Dom Eliseu, cidade próxima de Paragominas. Fiquei até 1999, quando resolvi voltar para São Paulo e fui morar na Mooca com a minha família de Belém.
 
Foi quando conheceu a Carla Pernambuco do Carlota?
Pois é, acabei entrando como açougueiro no restaurante Carlota, da Carla Pernambuco. Aprendi muita coisa lá. Mas eu e a Carla brigávamos muito. Era uma relação de amor e ódio. 
 
Como você foi convidado para trabalhar no Palácio do Planalto?
Depois de ter aberto e vendido um restaurante em Jaraguá (GO), me mudei para Itu (SP) para cursar Turismo. Recebi e aceitei um convite para voltar para Goiânia e chefiar a cozinha de um restaurante tailandês. Lá, acabei fazendo o cardápio para a Casa Cor e uma assessora do Palácio do Planalto comeu minha comida, gostou e me convidou para ir para Brasília. No primeiro momento não achei que fosse sério. Mas acabei indo e virei chef da cozinha do Palácio do Planalto e dos outros palácios.
 
Quanto tempo você ficou em Brasília cozinhando para o presidente Lula?
De 2004 a 2007. Eu cozinhava para o presidente e elaborava os cardápios dos outros palácios (Jaburu, Alvorada). Era um trabalho pesado e de muita responsabilidade. Nós servíamos cerca de 5 mil refeições diárias.
 
O presidente Lula era exigente em matéria de comida?
Era tranquilo. Ele gostava de arroz, feijão, farofa e picanha. A então ministra Dilma Roussef tomava café, almoçava, lanche da tarde e jantava. O presidente, quando estava no palácio, almoçava e tomava um lanche à tarde.
 
E de Brasília você foi para onde?
Voltei para Goiânia e depois vim para São Paulo para montar o Las Favas Contadas aqui na Vila Madalena.
 
Como você chegou até a Vila Madalena?
Eu já conhecia a Vila e queria ter aqui o restaurante. E aqui foi o primeiro imóvel que visitei, me apaixonei pela casa e já fechei contrato. Aqui funcionou antes o Tocador de Bolacha. 
 
Que você acha da Vila Madalena?
É impossível não gostar da Vila. E já estou querendo vir morar por aqui. Eu e meu sócio José Henrique estamos felizes com o Las Favas. 
 
Como você define sua cozinha?
Como cozinha viajada, instigada, sem frescuras. É irrequieta assim como eu. Sempre estou pensando em novos pratos. Nunca estou parado.
 
O paulistano é muito exigente?
Bastante. Aqui é a capital da gastronomia do país. E tem muitos restaurantes bons.

O que você frequenta na Vila?
Eu não saio muito para comer fora. Um dos que já fui é o Rosa Maria para comer arroz de passa e o ceviche. Adoro ir ao sacolão aqui da Vila. Tanto para o restaurante como para minha casa. Gosto da loja Solar que tem na Fradique Coutinho. Acho que estou bem enturmado aqui na Vila. 
 
Arroz com feijão é o prato mais brasileiro de todos?
Como todos os dias e também uma saladinha com tomate. Gosto de rabada e feijoada de madrugada. 
 
Além do restaurante, você também faz eventos?
Sou contratado para cozinhar nas casas das pessoas. E neste ano vou participar do Mesa Brasil, promovido pelo Sesc. Serão aulas-show no Sesc Itaquera. Vou preparar duas receitas de pratos goianos. O brasileiro precisa conhecer mais a sua culinária.
 
Falar de sua vida e das dificuldades não lhe incomoda?
Ainda é difícil de falar de certas coisas que passei na vida. Mas sinto orgulho de ter chegado até aqui. Eu não sou um chef bem nascido, mas o que consegui foi com muita luta e sempre estou aprendendo mais. Me considero um cara de sorte.

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