Vila Madalena, este universo

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Pedro Costa

Dezembro de 1979. Duro. Recém-casado. Nesta época morava na rua Gonçalo Afonso, 47. Entre um bico e outro, fazia do bar do Mané, ali na Aspicuelta, que até hoje está lá, o meu escritório. Zilda, esposa do Mané, cuidava além de um casal de filhos pequenos, Alex e Ana, das contas anotadas no seu caderninho que chamávamos de “AIAIAI”, devido ao susto mensal e pontual que tínhamos ao acertar a conta. Mortadelas quadradinhas no palito e dezenas de cervejas batiam recordes sempre, além de umas pinduras deste bar – mercearia. Santo Mané. Eu e o Zé Eduardo, para não errar de Manés, pois onde está hoje o bar Canto Madalena, pertenceu ao Mané II, na Medeiros de Albuquerque. Neste íamos quando o lero carecia de mais sossego. Já no Mané I, era para encontrar os amigos, como os saudosos; Vanderley Marceneiro que fazia da cerveja virar chope com guardanapo de papel, Juca o pintor ideal, o amigo fiel, Liminha, o Armandinho Barbudo, o Nicola da garagem de ônibus na frente do Mané, o Nelson motorista, alguns professores da PUC, entre eles Alfredo, caro mestre amazonense e tantos outros que o tempo ou o vento cuidaram de levar.
Cláudia lecionava dois morros acima do bar do Mané, na rua Monte Alegre. Eu, um sonhador barato, dando cursos mambembes, ora pintando placas como letrista ou de free-lancer por ai.
Naquele final de ano, logo cedo já estávamos no Mané l, confraternizando com os amigos. Antes de sair de casa, um pedido. E estes não eram muitos: – “Hoje você precisa ir. O pessoal quer te conhecer. É fim de ano… Mas, olha não vá assim, relaxado de bermuda e havaianas, vá bonito, capricha só hoje, vá emperiquitado, o Mané libera você”.
Muito bem, atenderia tal pedido. Era duro largar o meu habitat, os amigos de balcão e vitrine, ainda mais sair da Vila Madalena, meu porto seguro, nunca gostei de passar às fronteiras do bairro.
Havia me excedido cevadamente, quase esquecendo do evento. Alertado pelo relógio fixado ao lado da imagem de São Jorge, o atraso já me preocupava. Abracei o Zé e cantei… “Uma saideira e muita saudade e a leve impressão que já vou tarde”… A preocupação de estar atrasado fez com que eu tomasse uma Genebra para encaminhar a saideira. O Zé Eduardo retrucou: – … “Vá meu irmão, pegue esse avião, você tem razão …” Às vezes nos diziam: – “Poxa, vocês conversam muito! – Não, até que não, a gente canta bastante mesmo”.
Tentando lembrar do aviso e achando gozado a recomendação para que eu fosse “emperiquitado”, em casa, vejo o periquito de plástico do meu filho Pablito pendurado no seu bercinho… Não deu outra. Peguei no armário um antigo paletó cheirando a naftalina, costurei o pé do periquito no ombro esquerdo, taquei uma calça listrada e fui. Tal como o pedido, emperiquitado.
Toco a campainha. Cláudia há muito esperando, atende. Abre a porta, abre a boca, nos vê, fecha com tudo, sem que eu tivesse tempo de me mover. Toco de novo. Vem algo parecido com camareira. Entro, penumbras, música clássica (sem letra) e abajures. Cláudia trancada no banheiro. Cumprimento todos. O periquito no ombro é a atração do momento.
Cardeal: – Que engraçadinho!
Vice – Reitor: Ele fala?
Outra: Que bonitinho, bilu, bilu…
Uma mesa cheia de vinhos e queijos de todos os tipos e nacionalidades. Encosto-me na mesa, falando abobrinhas e ouvindo também. Nietzche, Parmesão, Heidegger, Gorgonzola, Marx, Chateauneuf du pape, Platão, Patês, Sartre, Moreira da Silva, Corvo de Salaparuta, Brie, Kanti, Cheedar, o Papa e tutti quanti.
Longe da claridade, das padarias e dos bares da Vila, perto de queijos apetitosos, paletó imenso de muitos bolsos profundos, atiçaram minha infantil cleptomania. Um queijinho ali, outro aqui, um acolá e sutilmente o paletó inchava. Com muita dúvida e alguns problemas existenciais, dispensei uma caixa de fósforos Guarani, para caber um simpático queijinho suíço. Permutas da Dialética, nada mais.
– “Queridos frades e compadres, a passagem de ano foi maravilhosa, no entanto careço de um descanso”. Com os pés já meio redondos, cantei: “Ainda é cedo amor, mal começastes a conhecer a vida, já anuncias a hora da partida”… E ainda emendei com um convite: “Amanhã, aguardo vocês todos em casa, vou fazer uma omeletada. Amanhã sim, vocês verão o que é festa! Arriverdethi, Romaaaa…”
Assim logo cedo, um cutucão de vassoura tenta me acordar. Num salto precipitado, cai da cama.,
-“Pedro, veja o que você arrumou. Estão todos lá fora.”
-“Que todos? Onde? Pra quê?
Minha nuca doía. A ressaca era fatal. Levantei, puxei levemente a cortina da sala e realmente todos da noite passada lá estavam. Coloquei-os para dentro. Vesti o calção surrado, fui até o querido Mané. Pendurei três dúzias de ovos, uma caixa de cerveja e voltei. Chamei o vizinho Zé e o seu violão. Tinha omelete com queijo gorgonzola, suíço, mineiro, brié, prato, camerbert etc e tal. Haviam muitos risos, fundos e verdadeiros, não sei se era do reconhecido paladar já provado, o provocador das risadas. Sei que rimos muito toda a tarde. Ou de mim ou deles. Não se sabe, muito menos era importante saber porque. Por estas e outras, cada um teve depois a sua casa.
A rua Turi já me esperava. Quando o último convidado saiu, coloquei na vitrola o LP da Bethânia, cantando o Diamante Verdadeiro de seu mano Caetano. “Neste universo cheio de brilhos e bolhas, mil beijinhos, muitas rolhas espalhadas dos pescoços das Chandon`s…

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