A tripulação da robusta embarcação acabava por conhecer no momento do embarque. Meus parcos conhecimentos náuticos de um mero mestre arrais habilitaram-me a subir para o convés. Fui o último a subir a bordo. Em comum acordo, puxei o cabo da poita. Para desatracar do cais, pedi a outro marinheiro para recolher a âncora da popa. A bússola indicava 120º a oeste. Lá fomos nós. Quanto mais entrávamos em mar aberto, mais nuvens cúmulos-nimbo se fechavam em torno do imenso céu nublado. Aos poucos o continente sumia sob a leve curva da terra. Respingos de chuva ou espumas das ondas molhavam levemente nossos rostos maravilhados. A navegação seguia em frente, era precisa e a aventura extremamente necessária para nossa muda e restrita tripulação.
Sinto falta dos filmes de Federico Fellini. Um pintor que não pintava e um navegante que nunca navegava. Assim foram seus filmes. O vento vem nesses momentos para conversar e nos assopra imaginações e alegorias. O vento é felliniano. O velho cineasta tinha uma coisa preciosa para um artista – o que Shakespeare chamou de “o leite da bondade humana”, uma imensa delicadeza com a vida e uma grande compaixão pelas pessoas, onde só o visionário vê a realidade.
Chegava a hora do retorno. Findava meus devaneios. Para voltar ao ponto de partida, localiza-se o norte, calcula-se na bússola 360º menos os 120º da origem e assim, ao entardecer, a boreste já avistávamos o continente.
Atracamos no cais da Rua Harmonia, Vila Madalena, a 240º da zona oeste. Desembarcamos silenciosamente da grande escuna frutífera com as bocas lambuzadas de vermelho. Satisfeitos, descíamos do alto, eu e os desconhecidos moleques marinheiros, do imenso pé de amora da calçada.
Novamente acenos de adeus, desta vez sem lenços brancos, deixavam aquele cais, assim cada qual partia com o seu embornal para outros pontos cardeais, sem precisar sair além das coordenadas da Vila Madalena.
Foi triste deixar aquela penca de moleques felizes. E o frondoso pé lotado de amoras, ali à deriva, na enxurrada da rua.
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