E o vento levou…

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Alguns moradores da Vila, os mais antigos, lembram-se do Bar do Dominó, onde hoje é o Posto 6, na Mourato Coelho com a Aspicuelta. No balcão ficavam os donos lusitanos, tidos como bravos e mal-humorados pelos frequentadores, Francisco e seu tio Antonio. Na verdade o apelido que pegou deste bar era “Ao Barateiro”, não pelos seus preços baixos como achavam os seus proprietários, mas pela quantidade de baratas que circulavam pelo salão. Os donos sentiam tremendo orgulho pelo apelido de preços justos e eram gratos aos seus gentis fregueses tiradores de sarro.
Nesta mesma época, mais à frente da Mourato com a Visard, estava o bar de sinuca do Seu Chico, onde era também a sede do clube de futebol 1º de Maio. Lá o freguês principal era o Boi. Sujeito grande, bondoso e às vezes briguento. Trabalhava no cemitério São Paulo, construía e reformava túmulos, de fato, como ninguém. Gostava de apostar nos craques do taco daqui da Vila. Certa feita veio um jogador de sinuca de fora para competir com um adversário no qual o Boi apostara pesado. Sabendo da valentia do visitante favorito, o Boi trouxe do trabalho um esqueleto inteiro nos braços e colocou-o deitado sobre a mesa de bilhar por instantes, dizendo que era para dar sorte. Assustado e trêmulo, nosso visitante, para delírio da galera, perdeu feio as três partidas e a negra. Nunca mais pisou por aqui.
Outra figura inesquecível era a Kika. Entre estes bares passava sempre pelas calçadas. Quando tomava umas a mais, a molecada de olho começava perturbar a Kika, que levantava a saia e mandava palavrão sem parar. Era o delírio da meninada que nunca havia visto mulher seminua. Assim Kika divertiu e se apresentou há quase três gerações.
Num destes domingos que os anos deixaram para trás, a Vila amanheceu com uma surpresa. Seu Rodolfo, nosso primeiro fotógrafo, expôs na frente de seu estúdio, onde hoje é o Bar Empanadas, os retratos de todos os moradores da vila, lado a lado. Desafetos juntinhos, malandro ao lado de trabalhador, retratos de jogadores de times rivais, vizinhos que não se falavam há anos juntos, enfim todos que passaram por sua objetiva lá estavam. A missa estava vazia, todos na rua queriam ver seus rostos coladinhos um com outro. Com um pequeno detalhe, ainda não havia fotos coloridas. Aquelas sim. Seu Rodolfo, outro brincalhão, tingiu com anilina foto por foto, cor por cor, detalhes como cabelos verdes, negros de olhos azuis, até portugueses racistas pintados de negro. Padre Olavo não demorou a chegar para dispersar e buscar todos os seus peregrinos para a missa dominical, o que não foi nada fácil. Ninguém ali pareceu ousar em pensar: “paz na terra aos homens de boa vontade”.
Para o vento que tudo isso levou com o tempo, cumpra sua sina de feroz varredor, vai-se aí também, um dia deste mesmo passado, onde dois meninos, Lentilha e o Feijão, levavam numa única bicicleta, uma lata enorme lotada de hóstias para ser ainda bentas na paróquia do Padre Olavo, quando ao passarem por uma pinguela sobre o córrego, perto do cemitério, a bicicleta escorrega, os dois meninos caem e a lata já aberta, repleta de hóstias, voava para os céus espalhadas pelo vento por toda a vila, onde flutuavam pagãs, caindo feito neve, sob os céus de madalena.

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