Uma vida dedicada à pesquisa

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Anita Panek, 75 anos, se define como uma curiosa. Natural de Cracóvia, Polônia, chegou ao Brasil em 1940, refugiada da 2ª Guerra Mundial. Apaixonou-se pelo País e aqui trilhou uma carreira muito bem-sucedida na área da bioquímica, mais propriamente do metabolismo, ou seja, do estudo das reações químicas que ocorrem em nosso corpo. Química Industrial e Doutora em Ciências, foi professora e orientadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a qual ainda mantém vínculos mesmo depois de aposentada. Ainda realiza suas pesquisas na célula de levedura com o objetivo de descobrir os mistérios do envelhecimento humano.
Após 64 anos vivendo no Rio de Janeiro, mudou-se para São Paulo com a finalidade de estar mais próxima da família. Escolheu a Vila Madalena para morar e realizar suas novas pesquisas. Desta vez, na área da gastronomia. No Anacê Gourmet, ela alia seus conhecimentos de bioquímica à busca de novos temperos e aromas para pratos da culinária de diferentes países e regiões. Entre um compromisso e outro, encontra tempo para cuidar da saúde e da mente e colocar em prática seus dotes artísticos. O artesanato é o maior hobby desta polonesa, naturalizada brasileira. Segundo ela, o belo sempre fez parte de sua vida.
Anita Panek é uma mulher culturalmente rica e, por que não dizer, à frente do seu tempo. Entenda porquê nesta entrevista.

Como foi a fuga da 2ª Guerra Mundial para o Brasil?
Eu nasci na Polônia. Antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, eu, meu pai e minha mãe estávamos passando dias de férias na Riviera Francesa. Saímos da Polônia no dia 13 de agosto de 1940 e a guerra estourou em 1º de setembro, quando a Polônia foi bombardeada. Por causa do Holocausto, nós nunca mais pudemos voltar. Meus pais e eu ficamos na França e depois fugimos para Espanha quando os alemães invadiram Paris. Fugimos à noite pela fronteira da Espanha. Lá tentamos conseguir visto para sair da Europa. Como nós somos judeus precisávamos de cota, e para os Estados Unidos estava esgotada. Tínhamos apenas duas opções: Brasil ou Haiti. Entre os dois, meu pai escolheu o Brasil. Na época, eu tinha 10 anos. Era filha única. Todos os meus parentes, mais de 20 pessoas, com exceção dos meus pais que vieram comigo, morreram em campos de concentração na Polônia. Hoje minha família é minha filha, meus dois netos e meu genro. Só. Eu cheguei ao Brasil em agosto de 1940. Mudei-me para São Paulo em agosto de 2004. Vivi, portanto, 64 anos no Rio de Janeiro. Vim para São Paulo para ficar próxima dos outros quatro membros da família. Minha filha mudou-se para cá há 20 anos quando se casou. Eu conto essa trajetória em um livro que se chama “Carta aos Meus Netos”, lançado em 2000. Agora estou com o segundo no prelo, “Historietas”, que relatam mais algumas passagens.

Qual o aprendizado que a senhora tirou deste episódio?
Batalhar para ser bem-sucedida. A fuga para um país estrangeiro onde não se conhece a língua, não se conhece ninguém e não se tem um tostão furado, como era o caso dos meus pais, tendo de começar da estaca zero – eu diria até negativa porque tínhamos dívida da viagem, viemos para cá com dinheiro emprestado -, faz com que se tenha gana de chegar a algum lugar. Pulava de um lugar para o outro no bonde no Rio de Janeiro para fugir do cobrador. Lembro-me que não tinha dinheiro para comprar chocolate do baleiro na porta da escola. Esses fatos, diante do aspecto consumista em que se vive hoje em dia, são marcas muito profundas. Eu me policio com meus netos, eles não têm nada a ver com isso, mas eu digo muito “não”. Hoje todo mundo quer e acha que precisa ter tudo. Não concordo com isso. Gosto das coisas boas, mas não sou consumista.

A vida foi muito sacrificada. Como era a relação com a família?
Tive uma vida difícil na infância e na adolescência. Mas um pai que foi uma figura importantíssima na minha vida. Era advogado, mas não podia exercer a profissão porque as leis não são internacionais. São específicas de cada país. Ele subiu na carreira sem exercer oficialmente o Direito. Foi muito batalhador e exigente. Fazia sempre com que eu tomasse iniciativa sozinha. Uma frase típica dele era assim: “Hoje no jornal tem uma crônica fantástica!”. “O que é pai?”. “Vai lá e lê”. Eu tinha que falar línguas. Estudei inglês e francês. Falava alemão, desde criança. Eu tinha que ter uma profissão que não fosse específica de um país. Por isso fiz química. Meu pai teve uma influência muito grande na minha vida e minha mãe trabalhou muito para ajudá-lo. Nos primeiros anos no Brasil ela foi diretora do salão de beleza da Helena Rubinstein. O belo sempre esteve presente na minha vida.

A área de bioquímica foi uma escolha certeira?
Formei-me química e, sem falsa modéstia, fiz uma belíssima carreira na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sempre quis estudar bioquímica. Sempre me interessei pelas reações químicas que ocorrem em nosso organismo. Como gosto de história e tenho uma certa veia artística eu queria acrescentar algo de belo e lúdico nas minhas pesquisas. Acho extremamente importante o pesquisador não ter viseira e sim uma mente aberta para as coisas belas da vida. O viver bem, admirando tudo que é belo na natureza e gostando de tudo que se faz, abre a mente do pesquisador para poder, então, investigar a parte científica a qual ele se propõe. Nesta busca e na pesquisa do metabolismo encontrei na célula de levedura o modelo ideal de estudo. Esta célula é extremamente semelhante às células do corpo humano e é relacionada às coisas boas da vida. É a partir da levedura que se faz o pão, o vinho, a cerveja e todas as bebidas alcoólicas. Portanto, a arte de viver bem.

A pesquisa sempre a motivou?
Gosto de indagações e sou curiosa. Comecei a estudar o metabolismo na célula de levedura. É importante dizer que as tecnologias mais antigas do mundo são as tecnologias da levedação do pão e da produção de cerveja e de vinho. Foi encontrada na Mesopotâmia uma placa de argila com a receita da cerveja que foi escrita 5.000 a.C. Os egípcios faziam sucos das uvas e largavam ao ar para depois tomá-los. Eles percebiam que ficavam eufóricos com a bebida. Acreditavam que era o Deus Osíris que mandava aquele néctar delicioso que fazia com que eles ficassem felizes amenizando as agruras da vida. Os egípcios também moíam sementes e misturavam com água, deixavam ao ar e quando se formavam bolhas colocavam entre duas pedras aquecidas e faziam o que, hoje, chamamos de pizza ou pão árabe. Os judeus, na fuga do Egito, não tiveram tempo de esperar a formação de bolhas e assim levaram as sementes moídas com água sem a fermentação dando origem ao pão ázimo, que hoje é relembrado na Páscoa Judaica. Tenho a alegria de poder dizer que encontrei a felicidade na pesquisa. Parodiando Omar Khayam, poeta persa que escreveu o poema Rubayat, no século 12, posso dizer que “felicidade é estar debaixo de uma árvore com um pedaço de pão, uma jarra de vinho e um amor”.

A célula de levedura sempre foi o foco das suas pesquisas?
Dediquei 50 anos da minha vida à pesquisa nas bancadas do meu laboratório estudando os fenômenos naturais, tendo como modelo as células de levedura. Formei 50 alunos de pós-graduação, mestres e doutores, que estão espalhados pelo Brasil nas mais diversas universidades. Muitos na própria UFRJ. Sou professora aposentada, emérita, da UFRJ. Por isso mesmo não entrei na compulsória. Continuo trabalhando com eles. A era da tecnologia e do computador permite isso. Passei esses anos todos estudando como a célula de levedura resiste no seu habitat natural. Por exemplo, como ela sobrevive num cacho de uva em uma região deserta, seca e rochosa perto do Porto, onde se produz um vinho delicioso? As leveduras constituem a flora dos cachos de uva, ficam lá sofrendo calor, oxidação e desidratação que favorecem a formação dos famosos radicais livres, que nós tentamos evitar pois levam ao envelhecimento. As células se ressentem desses estresses todos. Você pode estudar na levedura e depois extrapolar para a célula humana os danos causados pela desidratação, as altas temperaturas, a oxidação, a formação dos radicais livres e o envelhecimento que é uma área de grande interesse da bioquímica atualmente. Portanto, a levedura serve como modelo para estudo de adversidades do meio ambiente e, como é semelhante à célula humana, para pesquisas dos males que acometem o ser humano. No momento, no meu grupo do laboratório, estamos estudando o processo de envelhecimento das células na levedura. Com isso, temos, eventualmente, uma chance de desvendar algum mistério do envelhecimento nas células humanas e avançar um pouco em nossa pesquisa.

A carreira sempre foi prioridade para a senhora?
A carreira e minha filha sempre foram prioridades. Eu não devo ser feita para o casamento. Talvez se no meu tempo existisse essa forma de viver que existe hoje: cada um na sua casa e se encontram quando der vontade, talvez desse certo. Sou muito independente, não deu certo e não daria até hoje.

A senhora estava à frente do seu tempo…
Você é quem está dizendo. (risos) Na época eram poucas mulheres na faculdade de química. Participei de muitas atividades administrativas na UFRJ, inclusive em conselhos de pesquisas, sendo a única mulher no meio de homens. Sempre me dei muito bem e nunca sofri com machismos. Talvez porque saiba ouvir e só fale quando sei o que dizer. (risos)

Mas e o divórcio em plena década de 1950?
Isso foi muito avant-garde. Na época, 1957, eu fumava e era divorciada. (risos) Não era bem-vista. Ficava muito solitária e acabava me dedicando mais à carreira. Mas foi muito proveitoso. Isso é extremamente importante: gostar do que se faz. Sempre curti dar aulas, orientar alunos em pesquisas, ver o brilho no olhar dos alunos quando conto algo que se passa no corpo deles! Por que engorda? Por que emagrece? Por que comer torrada não adianta nada no regime? O carboidrato continua o mesmo, só retira a água do pão. Engorda do mesmo jeito… Essas coisas sempre me fascinaram.

Além de continuar associada à UFRJ e fazendo pesquisa científica aplicada, a senhora também tem outros interesses…
Há dois anos estou pesquisando em uma outra bancada. Na bancada da cozinha do Anacê Gourmet. As bancadas e a maneira de se trabalhar são muito semelhantes entre laboratório e cozinha. Você pode perfeitamente bem passar de um para o outro. É muito aconselhável, inclusive, que se tenha um treino rigoroso de laboratório, limpeza e dedicação. A pesquisa se dá nas comidas oriundas de diferentes regiões e países; receitas antigas que podem ser modificadas com conhecimento adquirido, por exemplo, com a pesquisa científica da célula de levedura. Com estas noções eu modifiquei várias receitas de pão porque verifiquei que poderia melhorar o crescimento da massa, a levedação do pão, alterando a temperatura, o tempo, as condições de estufa, etc. Sou muito pesquisadora por natureza. Gosto de investigar temperos e aromas a partir de ervas cultivadas em meu próprio jardim. Produzo azeites e vinagres aromatizados em meu sítio há dez anos. Nossos clientes recebem o resultado com os pratos mais elaborados e sofisticados, feitos com muito carinho. Sei que comemos com a boca, mas também com os olhos. Além dos pratos deliciosos também providenciamos a decoração das mesas e do ambiente para jantares românticos para duas pessoas ou mesmo pequenos grupos. Isso é extremamente conveniente para a dona-de-casa. Somos dois chefs e eu. Não me considero chef, apenas administro.

Sobra tempo para algum hobby?
Meu hobby sempre foi artesanato. Sobretudo buscas de composições, cores e texturas variadas. Tricoto muitas blusas de inverno e verão, cachecóis, mantas, sempre pesquisando novas tendências e materiais.

A senhora é extremamente ativa para sua faixa etária, não?
Sem dúvida.Talvez eu tenha essa atitude porque sempre convivi com pessoas de todas as idades na universidade. Por outro lado, gosto de viver bem. Eu gosto do belo. Gosto do que é bom e gostoso. Eu vibro com a alegria de viver. Isso me mantém viva. Acho que cuidar do corpo era algo que não se fazia tanto dez anos atrás como se faz hoje. Mas se a pessoa se cuidar, como é o meu caso, eu faço hidroginástica e yoga, não deixa a peteca cair. Essa é uma expressão brasileira que cabe muito bem.

Adaptou-se bem ao País?
Gosto muito do Brasil. Este país me acolheu muito bem. Fui naturalizada brasileira aos 15 anos. Tenho muitos amigos, me sinto brasileira e não sofro qualquer tipo de discriminação.

A senhora sempre esteve ligada ao belo, como foi a mudança da Cidade Maravilhosa para a charmosa Vila Madalena?
Saí de um apartamento no Rio para esta casa na Vila Madalena que é extremamente agradável e aconchegante. Na Vila Madalena eu me sinto como no Leblon, onde eu morava. Posso resolver absolutamente tudo no bairro, como se a Vila fosse uma cidade dentro da grande São Paulo.

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