Um poeta de poucas palavras

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Hamilton Faria é professor de sociologia da FAAP, professor de pós-gradução em gestão cultural da Universidade Metodista, escritor e poeta premiado. Este ano, Hamilton esteve na França para receber o prêmio da Société Académique des Arts, Science et Lettres pelos relevantes serviços prestados à cultura.
É autor de cinco livros de poesia: “Diavirá” “Cidades do ser”, “Encântaros”, “Súbitos encantos para São Pedra e Espanto” e “Haikuazes”, este recém-lançado (Escrituras, 108 pags, R$ 19,80). Neste livro, inspirado nos haikais japoneses, Hamilton apresenta sua visão poética do mundo e traça sua cosmovisão, como diz, de maneira sintética.
Tem como parâmetro a idéia de reencantar o mundo e torná-lo poeticamente habitável, criando relações mágicas entre as pessoas por meio da arte. Considera que o poema deve ultrapassar o estado de livro. Assim, por meio da Rede Mundial de Artistas em Aliança promove saraus e debates públicos sobre a arte. Nesta entrevista, o escritor fala sobre poesia e arte de maneira bastante descontraída e apaixonante. Confira!

Haikuazes é um livro de haikais?

É um livro inspirado no haikai, embora traga poemas curtos de três linhas com flashs nas estações e nas condições humanas. Muitas vezes as pessoas fazem versos enxutos e chamam de haikai. Eu criei uma palavra: haikuazes, que tem essa inspiração, mas nenhum compromisso com a forma tradicional japonesa que surgiu com o Bashô, no século 17. O haikai já é uma depuração da poesia japonesa que vem dos butás, tankas e por aí afora, que é muito difícil de se fazer. Ela tem uma ambientação muito forte na cultura japonesa. Existem grupos de haikaistas e até cursos específicos no Brasil, mas eu não pertenço a essa tradição de poesia que é quase um caminho espiritual.

O que sua poesia tem de diferente e em que se assemelha aos haikais?

Acho que os haikuazes guardam um pouco desta cosmovisão, mas o “eu do poeta” está muito presente no livro. No haikai esse eu não está presente. É um livro que vem sendo criado há um certo tempo, paralelamente a um outro tipo de poesia que está presente em livros anteriores, como “Cidades do ser”, “Encântaros”, “Súbitos encantos para São Pedra e Espanto”. Tenho desenvolvido uma linha de poemas mais curtos e diretos.

Não procura rimar o primeiro verso com o terceiro e colocar uma rima interna no segundo, assim como é tradicionalmente no haikai?

Alguns poemas têm rima, mas sem qualquer obrigatoriedade como o da capa: “tristeza não sabe/dentro da tarde/uma flor se Ave” ou “alegria do universo/esquecerei a dor/no sol do gesto”. A grande maioria não tem rima. Não é essa a pretensão. Por exemplo: “a tarde continha/tudo o que queria/flor e o domingo”. Neste livro tem um trabalho lingüístico, pois considero que a poesia não é apenas emoção revelada. A poesia tem uma linguagem própria e o trabalho com a língua não é apenas em relação às rimas, mas às metáforas, a musicalidade. Todo encadeamento e rítmo que diferencia a poesia de um texto mais prosaico. Neste livro existem muitas invenções de palavras como o próprio nome do livro.

A palavra “Haikuazes” tem algum significado?

Aproveitei a idéia do haiku, já que no ocidente haikai vira haiku Também tem a idéia de um “quase”. Poderia ter escrito de uma outra forma, mas tentei aproximar de uma proposta original. Fica mais mágico criar uma palavra só: haikuazes do que hai quase. No interior do livro acho que tem um trabalho bastante grande com as palavras. É algo a que eu me dedico.

É quase como uma brincadeira…

Acho que na poesia uma certa ingenuidade é importante. Se trabalhar muito com o lado racional do cérebro você se afasta da poesia. A poesia tem essa percepção. Ela é uma linguagem primeira, original. Neste sentido se enquadra o poema de abertura: “entre gênios e engenhos/concede-me, ó Deus/a pureza do ingênuo”. A poesia, como a arte de uma maneira geral, traz um reencantamento que falta ao mundo. Lembro-me de uma declaração de Salvador Dali que dizia algo como “o pintor tem ser um pouco burro”. Manoel de Barros diz em um de seus poemas que “entender é parede. Procure ser uma árvore”. Está aí a essência da poesia.

Deste modo, a arte transcende qualquer compreensão?

No livro “A jornada do herói”, de Joseph Campbell, tem uma passagem muito interessante onde diz que a arte nos traz um “Ah!”. Não tem explicação. A coisa mais terrível para o artista é perguntar o que ele quis dizer com tal coisa. Eu não respondo. A Joly, minha esposa, quando fala que não entendeu alguma poesia eu não explico [risos]. O sabor da arte é justamente isso. A poesia é um exercício da imaginação humana e aí que ela reencanta o mundo e alarga as possibilidades do real. Na literatura grega com Izildo, por exemplo, há toda uma reinvenção do mundo. Os parâmetros da educação da Era Homérica e em uma grande fase da Grécia eram baseados na arte. Depois que veio a filosofia, etc.

As poesias curtas são mais ou menos trabalhosas?

O poema curto dá tanto trabalho quanto um texto longo. Ele caminha para uma síntese do essencial. Leva-se mais tempo para publicar. Como se fosse um sumo concentrado. Fala-se muito, abre-se um universo, usando poucas palavras. Helena Kolodi escreveu um poema curtinho: “para quem viaja ao encontro do sol é sempre madrugada”. Pode-se viajar por mil lugares a partir desse poema. Ou: “pintei estrelas no muro e tive o céu ao alcance das mãos”. É fantástico. Meu livro é uma tentativa disso. Inclusive tem uma outra experiência estética que são os hais. O que é o hai? É menos que um haikuaze. Ele tenta captar uma essência poética máxima com uma unidade formal mínima. Geralmente são duas linhas.

Os haikais podem despertar o interesse pela leitura em um público que não tem este hábito, justamente por serem mais curtos?

Acredito que sim. Inclusive, tenho feito umas experiências com poemas curtos que chamo de “Meditações Poéticas”. Eu participo do programa Inspetor da Biblioteca da Secretaria de Cultura, agora nesta gestão não sei bem como está o andamento, mas o conceito é conversar sobre poesia com pessoas em bibliotecas de diferentes regiões de São Paulo. Os participantes são formados por crianças e adolescentes. Minha poesia não é direcionada a esse público, mas a primeira coisa que pergunto é se alguém já teve algum contato com poesia na vida, seja pessoalmente com um poeta, um livro ou pelatelevisão. De um grupo de 100 jovens é raro quando dois levantam a mão para responder que sim. Em algum momento eu peço para que eles fechem os olhos enquanto eu recito um poema e eles ficam imaginando. Daí o nome Meditação Poética. Em uma das leituras, em um CEU da Zona Leste, li o poema “Infância” que traz o verso “as roupas rindo no varal”. Quando perguntei o que eles imaginaram, um garoto respondeu que fez um poema que dizia: “do alto da minha laje, vejo uma multidão azul”. Olha que beleza! Não era da casa dele, era da laje, uma habitação típica da cidade. Ele não viu uma multidão escura ou cinza. Achei maravilhoso. A Meditação Poética só pode ser feita com poemas pequenos.

A poesia pode transformar a realidade?

A poesia mostra novas possibilidades de uma vida melhor apoiada na palavra como ato de criação. No momento em que a poesia está fluindo, você está elaborando seu universo. Por exemplo, estou com uma agenda de lançamentos previstos para este mês, que inclui Curitiba e São Luis. Inclusive, tenho um convite para lançar o livro na Feira do Livro que acontece em outubro no Chile. Mas acho que durante o lançamento de um livro o importante não é só o momento da venda. O momento mais incrível é o da formação de uma comunidade de emoção. A poesia faz isso. O que buscamos através das nossas tribos e vivências humanas é justamente reagregar essas pessoas. Se o livro puder ser este fator sem abrir a mão da sua linguagem e sem “panfletalizar”…Por exemplo, eu jamais faço um livro pensando que esse poema é bom para isso, esse pode ser bom para aquilo, vou fazer um poema para a conjuntura como faziam para o socialismo. O ato de criar é mágico. Com as melhores palavras e emoções cria-se um determinado tipo de realidade que vai constituindo a poesia. É a poética do reencantamentodo mundo.

O que é exatamente este reencantamento?

Difícil explicar, mas em suma é criar um mundo poeticamente habitável. Não somente um mundo onde tenha comida e saúde. Essa síndrome da miséria em que ter um emprego já basta. Queremos um mundo de celebração, de alegria, de relações mágicas entre as pessoas. Não acredito que a política ou a educação vão mundar o mundo se não estiverem junto de um cenário das afirmações culturais.

Ainda existe bastante leitor de poesia, freqüentadores de saraus ou esses costumes se perderam?

Nos anos 1970 era muito forte as casas abertas e saraus, principalmente em Ipanema, no Rio, que serviu como referência para o mundo. A casa do Vinícius era um ponto de encontro. Depois entrou uma modernidade mais bruta, um individualismo mais forte. A era da mercantilização da alma, como fala Edgard Moran. Uma sociedade fortemente ligada ao consumo, publicidade, informação… Tudo isso desagregou bastante as pessoas. Hoje você mora em um prédio e não conhece seus vizinhos! Mas esse costume tem sido resgatado em bairros. Na zona sul, por exemplo, existe o Sarau da Coperifa realizado toda quarta-feira em um boteco. Eu tenho feito em muitos lugares públicos. Acredito que dentro da minha trajetória o que considero ser bastante importante é a proposta de que a poesia não deve estar apenas em estado de livro. É preciso partilhar sua criação como um ato de gratidão. Na verdade, quem dá os elementos para serem trabalhos além do seu interior são as apreensões da realidade. Eu tenho feito muito sarau em ruas e praças como a Omaguás, Roosevelt, a República, em frente ao Teatro Municipal, em escolas, em CEUS…

De que maneira são feitos estes saraus?

A experiência dos saraus é fantástica. Um sarau que me marcou muito foi no Fórum Intermunicipal de Cultura que aconteceu no Espírito Santo. Fizemos este encontro sobre poesia em uma praça e perguntávamos para a população passante, para começar a conversa, o que era poesia. Formava fila para as pessoas falarem.

Tudo é improvisado?

Sim. Para mim os melhores saraus são improvisados. Tem que deixar fluir o Dionisio. Um certo desregramento é importantíssimo para que os saraus sejam vivos. Eu participo da Rede Mundial de Artistas em Aliança. Sou um dos animadores e tenho estado em muitos países que me proporcionaram experiências maravilhosas como na Tanzânia. Li um poema em português, depois em francês e uma outra pessoa para o inglês. Alguém que estava presente no encontro chegou e me agradeceu muito, mesmo não tendo entendido uma só palavra. A poesia passou por outros canais. A poesia não é só a palavra decodificada. Como uma música em inglês para quem não fala a língua: não se entende a letra, mas percebe-se o movimento, o sentimento e o tipo de energia que está circulando por ali. A partir do momento que a arte se instaura há um envolvimento total das pessoas. Talvez essa seja uma das poucas linguagens que os jovens hoje conseguem perceber. Há um descrédito com a política e com o ensino, mas há um crédito com as possibilidades da arte e deste jovem vir a participar da sociedade desempenhando seu papel de cidadão através da arte. Eu tenho feito muitas escutas culturais com jovens nos bairros, um público que o artista tem que ouvir, e eles falam que com a arte do teatro, poesia, etc, aprenderam a rir, a ser pessoas melhores e até dar bom dia para os outros.

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