Para proteger as crianças

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Ele tem o silêncio como álibi. O abuso sexual infantil acontece pouco a pouco, causa uma verdadeira devastação psicológica e deixa nada menos do que sérios traumas, muitas vezes irreversíveis. Seja qual for o número que se vê nas estatísticas, o fato é que essa realidade é bem mais grave e está mais perto do que podemos imaginar.
O abuso sexual infantil não se configura apenas onde a miséria se apresenta. Ao contrário, acontece nas mais altas classes sociais, nas escolas públicas ou particulares, em clubes, creches, transporte escolar, no consultório médico ou no dentista, na casa do amiguinho e mesmo dentro da própria casa da criança. Os adultos conhecidos e familiares próximos, como o pai, padrasto ou irmão mais velho são os agressores sexuais mais freqüentes e desafiadores.
Mas, como prevenir e como agir em caso de abuso sexual infantil? A internet serve como veículo de difusão da pedofilia e o que os pais devem fazer para combater este mal? Essas e outras perguntas foram respondidas pela psicóloga Mery Cândido de Oliveira, em palestra sob o tema “Feridas que não cicatrizam: as conseqüências do abuso sexual”, realizada durante a reunião do Projeto Amigo Legal, criado pela Vara da Infância e Juventude do Fórum de Pinheiros, e da Associação Mulheres das Américas, na Associação Comercial de São Paulo – Distrital Pinheiros, na Vila Madalena.
Mery é psicóloga especialista em Clínica e Forense, além de supervisora da Unidade Clínica do Ambulatório NUFOR – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Hospital das Clínicas, onde também coordena o Projeto Informativo de Prevenção ao Abuso Sexual (Pipas). É terapeuta didata pela Federação Brasileira de Psicodrama e colaboradora do livro “Psicodrama Contemporâneo” (J. Fonseca – Ed. Agora) e membro do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade (ABSex), da cadeira de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina do ABC.
Confira entrevista concedida pela especialista para o Guia da Vila.

Que situação ou ambiente facilita o abuso sexual infantil?
Há mais possibilidade do abuso em sistemas familiares disfuncionais e onde há quadro de alcoolismo, entre outros fatores que são comprovadamente facilitadores de abuso.

Quais conseqüências têm o abuso na vida da criança que é vítima?
Desvios de personalidade ou da sexualidade, e mudança da arquitetura neural, que é mais sério porque não tem conserto depois.

Como se dá essa mudança da arquitetura neural?
Pesquisas comprovam que a criança submetida ao estresse pós-traumático do abuso durante um tempo prolongado sofre transformação em algumas regiões cerebrais, como amídala e hipocampo. Ela perde massa, perde quantidade de neurônio, tem aceleramento da morte neural e isso não tem conserto porque as áreas ficam diminuídas. E só se comprova esse processo depois que a pessoa fica adulta. Enquanto a criança está no quadro de estresse, pode-se fazer ressonância, por exemplo, que não aparece nada. Há exemplos de pesquisa que mostram que, quando adulta, o hipocampo fica menor e que a amídala, que é a nossa reguladora de emoções, também diminui.

Como se observa que uma criança está sofrendo abuso sexual?
Um exemplo é mudança brusca de comportamento. A criança começa a apresentar um padrão de comportamento inédito, ela não era de uma maneira e começa a ficar: irritabilidade, distúrbios de fala, agressividade, depressão, fica muito introvertida, sensível, chora sem motivo. A última coisa que a família ou a escola podem esperar é que a criança conte. Isso não acontece. É muito raro porque a criança entra numa parte do ritual do abuso chamada síndrome do segredo. Essa síndrome faz com que ela fique num aprisionamento. É uma aparente cumplicidade com o abusador, mas porque está ameaçada, tem medo. Interessante é que as crianças são mais protetoras do que a mãe. Ou seja, uma das coisas que os abusadores fazem é ameaçar a mãe para a criança, dizendo que irão fazer alguma coisa com a mãe dela. Essa é uma moeda altamente valorizada nessa situação do abuso, porque tem uma força incrível.

Esses são fatores comportamentais. E os físicos?
Às vezes há queixas de dores, irritabilidade na vagina, que pode ser notada quando mãe vai dar banho e a menina se queixa; começa a fazer xixi na cama quando já não fazia mais e masturbação compulsiva. Já tive um caso em que uma menina, de cinco anos, queria tocar o peito dos homens, saber como estavam vestidos, ou seja, há uma sexualidade que não é pertinente à idade. Ao mesmo tempo, a criança dorme mal, tem pesadelos, agitação, sinais de um quadro de estresse pós-traumático.

Como os pais, ou no caso, a mãe deve reagir?
O mais importante é tentar questionar a criança de uma forma quase lúdica. Estimular o desenho, perguntar como são os ambientes que a criança freqüenta para que ela possa passar isso através de brincadeiras. No Hospital das Clínicas usamos bonecos para produzir a situação do cotidiano da casa. “Agora está de dia, o que a mamãe está fazendo? E o papai? E a noite, o que eles fazem?”. É muito comum criança vítima de abuso, quando chega a história da noite, modificar a cama, tirar o pai e colocar o avô. Através desses sinais a criança apresenta o problema, e de conversas diretas, que ela entenda. Quando a reação é muito violenta, tem que procurar um profissional.

De acordo com a pesquisa que realizou na penitenciária de Sorocaba, qual o perfil do abusador? Quais as principais variações desse perfil, se houver?
Baseados em dados estatísticos, Dr. Danilo Baltieri e eu encontramos um alto percentual de atos pedofílicos ocasionados pela influência de álcool e drogas. Encontramos também aqueles para os quais a criança é “coisificada” transformada  em objeto de prazer, como uma droga e da qual eles são dependentes. Encontramos ainda os que não conseguem separar as áreas da afetividade e da sexualidade, misturando essas experiências, geralmente com suas próprias crianças, as quais eles amam e cuidam. Existem também os impulsivos, que não têm contenção cognitiva suficiente para dar conta de seus impulsos e abusam, geralmente sem nenhuma seleção da vítima, sejam próximas ou não. Acho perigoso falarmos de ”perfis”, pois os traços podem vir combinados numa gama imensa de variações. É muito importante salientar  que a pedofilia é um desvio da sexualidade,  passível de controle através de tratamento, que pode permanecer somente na fantasia do indivíduo, sem que ele libere o o comportamento, sem praticar o crime. Ele pode ser inclusive aquele indivíduo que tem relações sexuais com adultos, aparentemente normais, mas que precisa fantasiar com crianças para sentir prazer.

A maioria dos abusadores sofreu algum tipo de agressão, física ou emocional?
Não, só encontramos relação, em número significativo, nos abusadores com mais de três crimes, portanto nos mais graves.

Eles conseguem se colocar no lugar da vítima?
Pela minha estatística no levantamento da capacidade de empatia, não. Ao contrário, eles nunca consguem entrar no papel de vítima porque ela é “coisificada” para o prazer, ou vista com alguém que eles estão ajudando, ensinando, cuidando.

De que maneira a internet favorece o abuso sexual?
Não tenho dados científicos quanto a isso, mas acho que o perigo é alguém que está na etapa pedofílica da fantasia, ao ver essa situação representada, usa-lá como aquecimento para vencer as barreiras internas e agir. Mesmo porque, não acredito que eles vão dramatizar os danos na vítima, coisa que, imagino, eles desconhecem.

Sites de relacionamentos, se a criança tiver livre acesso, são prejudiciais?
Qualquer coisa fica perigosa para uma criança sem supervisão. Cuidadores de crianças tem que ter consciência de prepará-la para o mundo atual, e saber que sites seus filhos visitam. Não é nem o desvio da sexualidade que faz da pessoa um abusador, mas a negligência. Se você tem intimidade com seu filho, esses fatores ficam sob controle. Se ele está com uma voz diferente, eu vou perguntar o que está acontecendo. Se estiver dormindo inquieto durante duas semanas, por exemplo, a mesma coisa. Tudo depende da minha intimidade, do meu conhecimento do jeito de funcionar dessa criança.

Qual o papel da mãe na prevenção do abuso sexual infantil?
De protetora  a cúmplice, tudo depende do aparato emocional e de maternagem dessa mãe. Negligência é a vitamina do abuso sexual infantil.

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