Ouçam outras vozes

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Em tempos de gripe aviária, febre aftosa, seca na Amazônia e inundações em outras plagas, é aconselhável refletir. O texto abaixo é parte do que escrevi para a cerimônia em comemoração ao dia de S. Francisco de Assis e também dos animais, em ambiente da Câmara de Vereadores (SP), 4 de outubro passado. Promovida pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal e WSPA (entidade ambientalista internacional) na ocasião foram homenageados políticos e jornalistas que contribuíram para que outras vozes, além das da espécie humana, sejam ouvidas.
“A ausência de empatia – a capacidade de traduzir intimamente as sensações do outro – ensurdece o humano pra qualquer lamento que não seja o próprio. Ele se lamuria do cansaço ao final do dia, da pensão no fim da vida; se o jumento adoece, que entoe o zurro à distância. O cão guarda a casa; quando velho, que vá ganir em dueto com o jumento na desvalia. O homem abre corpos na ânsia de compreender os mecanismos da vida, mas ignora o guincho de dor da cobaia submetida à cânula e ao bisturi.
O utilitarismo impede que o Rei da Natureza ouça as vozes que lhe chegam do elo mais fraco da corrente dos desvalidos. O chimpanzé é seu bobo da corte e fonte de riso; acabada a função circense, que chore na jaula pelo crime não cometido.
O rei se apropriou da eletricidade, escamoteou a diferença entre a noite e o dia; dos pássaros que alardeiam o despontar do sol, ele confisca as cores e privatiza o canto na gaiola, enquanto reivindica para si a liberdade de ir e vir. Outras aves, ele amontoa na granja sob o sol artificial de um dia perene: ali, elas envelhecem dois anos em dois meses pra que mais depressa calem os bicos e satisfaçam o soberano na gula de cada dia. O rei autoproclamado subverte as leis do seu reino, gerando o golpe dos males que devastam sua criação e contaminam sua corte. Então seus escravos conhecem o lado ainda mais impiedoso deste rei: a megaimolação, os megasepultamentos das vítimas ainda gementes. Nega-se a ouvir os pios e mugidos e não apreende o manifesto de revolta da natureza.
O imediatismo e a ambição, se ensurdecem o Rei da Natureza, também o cegam: as matas, pinta de cinza; o mar, de negro; os rios, decora com estranhíssimos objetos. Na sua ânsia de tudo alterar a seu bel prazer – trocando as curvas naturais pelo caminho mais curto das retas – apaga vidas, aniquila espécies, aplaina texturas ancestrais. E vai perdendo a memória da obra original.
O animal racional compõe as sinfonias e faz estrondar as bombas; inventa a vacina e envenena o ar; viaja pelo universo e enclausura os animais e seus semelhantes em campos de concentração. Promove Francisco de Assis a santo, mas não segue a luz que ele acendeu.Enquanto expande o agro-negócio, restringe o curso das águas, abafa os gemidos da sede, cala as vozes das florestas, assim arquitetando a destruição da sua morada.
E quando a rota das últimas aves for fumaça; as matas, quase pó; as águas, lama, certamente quem se julgava o centro do universo há de clamar pelo Supremo Protetor, aquele que Francisco, o da pequena Assis, chamava de Pai. Mas qual face voltará o Pai para o filho dominante? A face do protetor ou a do juiz? Ou simplesmente não ouvirá a súplica? Talvez enfim o homem perceba que, por sua vez indiferente, é o Pai que reflete a imagem do filho e a este decidiu se assemelhar.
O papel da proteção animal e do ambientalismo é evitar que esta visão apocalíptica se consume. É lembrar aos humanos que as palavras anima, alma, animal têm a mesma raiz. Fazê-los perceber que a pele fina, o rude pêlo, a leve pluma, a áspera escama envolvem a mesma matéria humilde, sujeita à dor. Que a dor nos iguala, que dividimos a mesma casa com os que nela chegaram antes de nós. E que é por isso que somos todos, como bem soube São Francisco de Assis, todos irmãos.
Cabe aos protetores e ambientalistas vencer a indiferença, o utilitarismo, a soberba da nossa espécie. Os resultados não virão como um Tsunami. O homem é um bicho político e a política é a arte do possível: que o riacho em pedra dura lhes sirva de exemplo. É preciso ter a memória do elefante, o olhar agudo da coruja, a manha do gato, a diligência da abelha, a fidelidade do cão. Em certos momentos, olhar do alto e silenciar como as girafas. E muitas vezes – lembrando de resultados já conseguidos – bradar com o poder vocal das baleias”.

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