O viajante das palavras

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Maurício Pereira gosta de andar a pé pela cidade. É assim que ele descobre as belezas escondidas em cada bairro, como a Vila Madalena, a Lapa, a Vila Ipojuca, e mesmo lugares da Zona Sul, Norte e Leste. Principalmente o centro.
São esses detalhes da metrópole que o ajudaram a compor “Pra Marte”, CD autoral que Maurício (quem não se lembra da banda Mulheres Negras, da qual fez parte?) acaba de lançar. São 14 canções inéditas onde ele retoma a crônica cotidiana, a poesia delicada, sua visão particular do mundo. Neste novo álbum Maurício é acompanhado por uma banda bem paulistana, um quarteto com a formação típica do pop/rock urbano: bateria (Leandro Paccagnella), baixo (Mano Bap) e duas guitarras (Tonho Penhasco e Luiz Waak, que também tocam violões de nylon, aço e guitarra portuguesa). Em Pra Marte também vale destacar o primeiro poema musicado por Maurício: “Pranto para comover Jonathan”, da escritora mineira Adélia Prado. Nas participações especiais Maurício conta com André Abujamra, Skowa e Daniel Szafran, além da curitibana Alice Ruiz. É só conferir.

Ao ouvir o CD “Pra Marte” descobre-se que você tem uma certa paixão por Minas Gerais, é isso mesmo?
Sou um mineiro enrustido, vamos dizer assim. Quando eu estava no Mulheres Negras me perguntavam se eu era mineiro. Eu tenho espírito de mineiro. No Mulheres tinha personagens. O meu era quieto, não sorria. Em seis anos nunca dei um sorriso em público. Era impassível. Podia cair uma lâmpada na frente que não sorria e não chorava. Sabe o que é diferente de Minas e de São Paulo? Os dois têm o interior forte. No Sudeste, acho que são as culturas mais interessantes. Mas no interior paulista o capitalismo veio com tudo quando o café chegou. E, no interior de Minas, a montanha segurou um pouco a tradição, a falta de pressa. Eles não tiveram tanto a pressão do capitalismo. Em Minas as coisas ainda são feitas na mão. Minas teve o barroco bem antes de São Paulo. São Paulo é maria-fumaça, café, italiano, japonês. Minas são os brazucas mesmo. O meu lado mineiro é o lado de gostar de andar a pé, devagar. Vamos fazer shows e a banda vai e volta no mesmo dia. Eu vou um dia antes e volto um dia depois. Na época em que tive moto ia parando de cidade em cidade e contemplando. Por outro lado, tenho muito da paulistanidade. Minha mãe nasceu no Brás! Então não tem jeito.

Você foi criado no Brás?
Não, na Vila Olímpia. Mas a Vila Olímpia nos anos 60… Eu morava na rua Atílio Inocentti, a rua que tem mais ‘mauricinho’ da cidade inteira. Era uma rua de terra, minha casa não tinha rede de esgoto, não tinha telefone, luz. Tinha uma linha de ônibus para o centro. Era um bairro diferente. Tinha cigano na rua. Jogava bola. Vila Olímpia e Brooklin estavam se formando.

Como veio para a região?
Foi quando eu casei. Estou há 20 anos com a minha mulher, entre namoro e casamento. Antes, tive uma namorada que era da Lapa também. A minha ligação com a Lapa foi o amor! (risos) É impressionante! Só me dei bem namorando mulheres da Lapa. A minha relação com a Zona Oeste é forte. Meus avós moravam em Campinas. E antes, para ir para Campinas, tinha que cruzar a Zona Oeste inteira. Pegava a estrada da boiada, não tinha a marginal Tietê… Lembro de ter que pegar a Barão de Jundiaí, a Gavião Peixoto, para pegar a Anhanguera. E a outra coisa da Lapa é que a gente ia muito de trem para Campinas. O trem saia da Luz, parava na Lapa, Pirituba, Campo Limpo, Valinhos e Campinas.

E com a Vila Madalena, que é tão boêmia e musical, qual a sua ligação?
Completamente musical. Na Vila há vários estúdios, muitos músicos tocam aqui… Eu toquei na noite três anos no Piratininga Bar, na Wisard, junto com Daniel Szafran, com que fiz discos. Os músicos estão pela Vila. É um lugar onde acontece muita coisa. Tive aulas com professores da Vila, há bares e teatros, é um lugar central da arte. E do jeito que eu levo a vida, faço muitas coisas pela cidade, e não tenho saco para andar de carro, deixo o carro em algum lugar, no metrô Vila Madalena, e vou a pé. Se tiver que ir ao centro, faço isso. Por mais que a cidade seja rápida e globalizada, cada bairro tem a sua personalidade. Os bairros aqui da Zona Oeste, como a Lapa, Pompéia e Vila Romana, sabemos do que foram feitos. São bairros mais antigos, tinha as fábricas. Têm o Palmeiras… Que eu odeio, mas ele é importante! (risos). E a Vila Santa Catarina, lá na Zona Sul, é um bairro novo, tem 20, 30 anos. Você vai andando por São Paulo e é tudo muito diferente. A Zona Norte tem uma colônia negra muito forte, por isso o samba se concentra todo lá, na Brasilândia, na Casa Verde… Em Santana tem o pagode. Forró é na Zona Leste, Santo Amaro, na Zona Sul. O rock’n’roll está aqui, na Pompéia, na Mooca, no Cambuci. A Vila Madalena tem essa onda da vanguarda paulista: Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Suzana Sales… Essa gente passou por aqui. Gente que tinha o pé na USP também e que tinha uma música mais intelectualizada. Então, a cidade tem essa coisa de bairro ainda, apesar da expansão imobiliária. E a minha ligação com a Vila Madalena é por causa da música. A Vila Olímpia é por causa da infância. E a Lapa é por conhecer pessoas, ter contato com elas.

Os bairros, o gostar de andar a pé, o boi visto nas estradas do interior… Tudo isso você retrata no CD?
Sim. Tenho 47 anos e a gente começa a olhar para o passado da gente, para as coisas que estão em volta, para as coisas essenciais… Não ‘tô’ nem aí se eu quero ir para Nova Iorque ou para Paris. O fato é que estou na Vila Ipojuca, na Vila Madalena, na Lapa. São Paulo talvez seja um dos lugares mais feios do mundo. Não tem ilusão. Já teve beleza natural, não tem mais. É um lugar onde a gente vive sob pressão da violência, da desigualdade social, do meio ambiente degradado, do trânsito… Ao mesmo tempo, estamos vivendo em um mundo maluco, não dá mais para ter ilusão. E o artista tem que achar a beleza e o sagrado seja onde estiver. E neste disco tem um pouco disso. Tem uma música chamada Toscana em que falo sobre ver a beleza onde não tem a beleza, em acreditar numa coisa onde não tem nada para você acreditar. Tem que buscar as coisas. Nem sei se existe mais alguma coisa no mundo para ser buscada, mas tem que achar.

Você também fala de amor no CD?
Sim, ele é um disco romântico, não no sentido daquele amor derramado, mas fala do amor e não de amor. Acho que é por observar as pessoas, ver que está todo mundo na fissura e que a relação afetiva ainda é o motor das coisas. E ao mesmo tempo temos o amor idealizado. Tem uma música, Trovoa, que fala bem disso. Você vai ter uma relação de amor com alguém e nesta relação você será um crápula também, tem coisas que não vão dar certo. As pessoas não são só lindas. São feias também! São idiotas! Não existe ideal. Quando você vai amar alguém você carrega tudo junto: a feiúra, a burrice, a idiotice, o tédio, a euforia, os bons e maus momentos. Eu te amo, mas no minuto seguinte não tenho mais certeza. Você se sente culpado, ao mesmo tempo atraído, tem medo daquilo. E a música pop, principalmente a mais comercial, tende a chapar o amor: te quero, te desejo… E o que estou expondo é que estamos no fio da navalha mesmo. Está difícil organizar o sentimento porque há pressão por todos os lados. Para a mulher, fico pensando, o que mudou a vida da mulher nos últimos 40 anos, e a mulher carrega o sentimento de uma outra maneira, mais grandiosa e densa. Para a mulher deve ser mais difícil. Não por acaso as mulheres vêm conversar comigo depois do show. Essa música Trovoa, por exemplo, mexe muito com elas porque é muito interna, escancarada de conflitos. É quase um cara dizendo para a mulher coisas que ela sabe que ele pensa, mas que nunca fala pra ela. Como: você não quer ficar comigo, eu não vou ser seu amigo, não quero saber, fui! Não tem essa de separar e ficar amiguinhos. São coisas viscerais. Eu viajo a pé pela cidade, mas tenho muito dessa coisa interna.

Isso não seria melancólico demais?
Vejo a melancolia não como um sentimento baixo astral. A melancolia é a parte bonita da tristeza. A melancolia é necessária para fabricarmos alguma coisa que preste na vida. A melancolia tem muito disso, coisas que têm valor e não necessariamente são alegres. Uma coisa que você perdeu, uma sacada errada, coisas que são boas, mas o sentimento não encaixa. E São Paulo é uma cidade melancólica. E por causa da cidade ser hostil acabamos desenvolvendo mais o lado afetivo. Em São Paulo, para compensarmos a violência, a rapidez, os laços afetivos têm que ser mais fortes. Tem muita gente solitária aqui? Tem. É difícil os pares se acharem. Mas de modo geral é preciso tem os “manos”, para quem corrermos quando é preciso.

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