O Golpe da Copa

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Le coup de la Coupe. Não dá pra fazer de conta que não aconteceu. Por isso a coluna Bich & Cia. deste mês está mais pra “… & cia” do que pra “bicho”.
Começou emocionante, como sempre, por conta das duas mais belas melodias de hinos nacionais: do nosso e de La Marseillaise. (Apesar de que, se espremida, a letra da Marselhesa pingue sangue; e dos termos rebuscados do nosso hino. Já ouvi gente cantando “… do que a terra margarida”).
Expectativas foram criadas acerca do belo futebol que seria exibido; e a manifestação anti-racista que o precedeu, reforçava o clima fraterno de uma nova Alemanha. Desde as oitavas de final me chamou a atenção o número de jogadores franceses negros ou de pele escura: 16 entre seus 23 integrantes. Dois são das Antilhas, um de Camarões, um do Congo, outro da Guiana; e Vieira, do Senegal. Thierry Henry tem ascendência antilhana e Zidane, argelina. Respondendo a crítica de Le Pen, líder da extrema-direita francesa, sobre o fato da seleção de jogadores ter dado espaço demais às minorias, o zagueiro Lilian Thuran disse: “Antes de ser negro, sou francês”. Como ele, Thierry Henry participa de campanhas anti-racistas. Tudo indica que o futebol francês se nutriu e cresceu com o sangue africano.
Sem raça definida (SRD) é o termo técnico pra designar vira-lata. Talvez sejamos nós, os brasileiros, o povo mais SRD do mundo. Quem de nós pode garantir que não tem, no mínimo, sangue árabe via ascendência portuguesa ou espanhola? Ou via italiana, um tempero de sangue africano – embora mais distante – por conta das conquistas na África da Roma antiga? Os 16 jogadores franceses olham do alto os racistas que os consideram vira-latas humanos. No jogo Brasil X França nós não nos respeitamos o bastante, praticando um futebol vira-lata (no caso, rola-bola) no seu sentido pejorativo. Com exceção do quarteto enérgico: Dida, Lúcio, Zé Roberto e Juan. Ronaldo, quando disputou alguns lances, lembrou um bulldog querendo alcançar galgos franceses. E provou que é um fenômeno: em três das cinco partidas conseguiu tornar-se invisível. Fomos uma nau sem rumo, sem comandante. Parecíamos um grupo de sedados ou mal dormidos. Enquanto Zidane, um SRD legítimo, distribuía chapéus e lençóis nos Ronaldos, deixava zonzo Gilberto Silva e, fiel ao refrão da Marselhesa – formez vos bataillons- cantada lindamente pela torcida, arquitetava a vitória passando certeiramente a bola pros companheiros. Há SRDs e SRDs. E “ter raça” vai além de “ser de raça”.
O que ficou de tanto incenso pra deuses frágeis? Mais uma vez a lição de que a soberba, que nos vitimou na Copa de 50 – aula de História que esquecemos – nos torna cegos. E é flagrante pra mim: é aquela mesma soberba com que olhamos pros menos afortunados, pras outras espécies e pro meio ambiente pensando que “na hora a gente resolve”. Quando já for tarde demais. Em segundo lugar, restou o enorme estoque de uniformes auri-verdes sem saída – golpe este, remediável. Em terceiro, torcer por Portugal, país que nos colonizou, porém acolhe tão bem nossa produção cultural e nosso Scolari.
E por fim, pagar as prestações da viagem à Alemanha…

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