Leishmaniose, inquisição

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Nos últimos anos temos sido bombardeados pela campanha contra a dengue, recomendando a evitar que águas fiquem depositadas em vasos, pneus em desuso, etc. Agentes sanitários inspecionam locais suspeitos de focos, borrifações de inseticidas são feitas. A vontade política dos governantes tem obtido razoável sucesso no combate à doença. No caso, esta vontade deriva da consciência dos custos – em termos econômicos, sociais – que um mal como a dengue acarreta para os Ministérios da Saúde e da Previdência; e os pessoais que a doença provoca nos seres humanos.
Mas uma outra praga, a leishmaniose, também provocada por um mosquito, vem se alastrando pelo país em regiões menos urbanizadas, também afetando seriamente os humanos. Porém combatida de forma ineficaz e, acima de tudo, cruel e injusta.
Em alguns estados se instalou verdadeira inquisição contra os cães, impiedosa e inutilmente. Cães são hospedeiros da leishmaniose (também chamada de calazar). Seu sangue é o prato predileto da leishmânia, um flebótomo (mosquito). Porém os cães não transmitem a doença para os seres humanos. Centros de Controle de Zoonozes têm sacrificado animais em escala, por métodos dolorosos e até rudimentares em várias regiões do país. As notícias nos chegam de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Ceará e do próprio interior do estado de São Paulo.
A leishmaniose visceral se instala, em animais e humanos, através da picada do inseto: esta é a causa imediata. Mas a raiz do problema está mais atrás. A causa primeira é o desmatamento que expulsa o mosquito das áreas silvestres e o leva a procurar novo habitat, sem os seus predadores naturais.
Em artigo publicado em 10 de agosto no Correio do Estado (MS) Maria Lúcia Costa Metello, veterinária e advogada, conselheira da Sociedade Brasileira de Medicina Veterinária afirma: “O mais preocupante, no entanto, é não vermos medidas deveras eficazes para conter efetivamente esta letal zoonose por parte de quem de direito (e de dever), o Ministério da Saúde. Mesmo quaisquer esclarecimentos nos canais de comunicação, a título de utilidade pública, não são feitos regularmente para a população orientando-a a colaborar para tentar evitar a doença…”.
Ela diz adiante: “E quando algo é noticiado referente ao assunto, o resultado é uma histeria coletiva de chamadas para recolhimento de cães, por pura suspeita da doença, de forma totalmente leviana por parte de seus proprietários afrontando, assim, a Posse Responsável dos animais que têm sob sua guarda”. A autora aponta: “O que a mídia não noticia corretamente é que o cão, hospedeiro da leishmânia e não o vetor – que é o mosquito flebótomo – não é o grande culpado do surto. Ou seja, não adianta matar todos os cães de uma cidade que a doença não será erradicada”.
Maria Lúcia Metello acrescenta: “O cão, mais uma vez, prova que é o ‘melhor amigo do homem’, morrendo por ele ao oferecer o seu sangue. Coitado do cão que está ‘pagando o pato’ pelo desmazelo da atual política de administração de saúde pública adotada no Brasil”. Salienta ainda em seu artigo a responsabilidade dos governantes em permitir os desmatamentos. E pergunta: “Até quando vamos tirar vidas em nome da saúde pública? Mas que todos se lembrem de que, enquanto se matam bichos, os humanos estão morrendo também. E como sempre ocorre na Natureza, primeiro os bichos; depois, os homens!”.
No mês passado, nesta coluna, falando sobre o Projeto Rã Bugio em Santa Catarina, quis afirmar que proteção animal também é ambientalismo. Não um caso de “protecionismo ambientalista” isolado. Enquanto ambientalistas e protetores (que deveriam soar como sinônimos), não compreenderem e aceitarem que devem conjugar esforços na conscientização do povo e em ações, os resultados de uns e outros continuarão raros e débeis. A raiz (os desmatamentos) e o combate à leishmaniose mais uma vez demonstram isto. Só não vê quem não quer dividir os recursos angariados, ou se encastelar na posição antropocêntrica, a da natureza a serviço do homem, e tão antiquada quanto a prática da Inquisição. Precisamos ter noção da “unidade da totalidade”, como bem disse o físico e cosmólogo Mário Novello em interessantíssimo “Roda Viva”, da TV Cultura, no último dia 4.

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