Estrelas varzeanas

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Pedro Costa

O futebol varzeano e suas estrelas desconhecidas do universo do grande público continuam a puxar estórias e momentos para o presente. Assim, carinhosamente, alguns leitores do guia fizeram chover e-mails no gramado deste cronista varzeano.
Ziquifir era o nome do time. De camisa preta em pleno sol escaldante, com a letra inicial “Z” prateada no peito entrava em campos do interior a fora. Lá foram certa feita jogar com o Santa Sofia em Pedreira. Time igualmente bom, raçudos e invictos. Mas justo naquele sábado teve o baile com o Super Som T. A. e todo o time estava presente no clubeco saindo na madruga, sol já raiando e o jogo marcado para às dez da matina do domingo, segue contando o nosso morador do bairro, Zé Eduardo de Souza. Teve sujeito que não dormiu nada. Foi direto. Só passou em casa para pegar a chuteira e saiu para esperar a Kombi passar na praça. E lá fomos para a cidade vizinha dormindo no trajeto na maior inhaca. Eram nove na Kombi e mais cinco num Gordini asmático. Para o aquecimento, os reservas também entravam em campo e batiam bola junto com os titulares até o início do jogo. Entramos no campo vaiados e ressacados ainda mais. Olhos vermelhos e pernas que não obedeciam nem com um montão de óleo elétrico friccionado. Sol das dez da matina rachando a cuca. Foi então que o Tatu falou baixo pro Sansão: “Fica… E cola no 10 deles”.
Sansão rateou, não entendeu, mas ficou. A princípio, continua Zé Eduardo, ninguém percebeu. A gente jogava no 4.3.3 passamos a jogar no 4.1.4.2… Sansão, marcador implacável, tipo carrapato de boi, grudou no 10 dos caras (que jogava muito) e não o deixava tocar na bola. Com meia hora de jogo já emplacávamos 2×0, quando da arquibancada um cara berrou e ferrou tudo: “PÁRA ESSA COISA, PÔ!. OS CARAS ESTÃO JOGANDO COM DOZE!!!.”
Tatu (brigão e prevenido, sempre jogava com cabo de aço no lugar do cordão do calção, com a camisa por cima) puxou a “arma”, calção caiu, ficou de sunga e rodava sem parar o cabo pra toda direção berrando: “VÃO PRO VESTIÁRIO QUE SEGURO AS PONTAS!”. Ninguém se aproximava, mas o pau comeu solto e saímos da cidade escoltados pela polícia local, que morria de vontade de descer o cacete, mas tinha que manter a ordem. E mantemos a invencibilidade.
Aqui no nosso bairro vizinho, na Lapa, havia o “Lapeaninho”, nos conta Carlos Zuanella, ex-jogador do time da década de 40. O Lapeaninho era tão bom que além de lançar vários jogadores para o futebol profissional como Frítolo, Goleardo e Peixe, todos para o Palestra Itália, ganhou na sua estréia do Corinthians por 3×1, lá no seu campo Triângulo na rua Tenente Landi. O filho do Peixe, o Peixinho que também jogou no Lapeaninho inaugurou, já com a camisa da Seleção Brasileira o primeiro gol do estádio do Morumbi. Assim como as estrelas nascem na escuridão do buraco negro para a evidência nos céus, os nossos ídolos igualmente surgem para os holofotes dos gramados. E assim é até hoje.
Outro morador da Vila que chegou a ser um dos habitantes do CRUSP, na Cidade Universitária, o José Guevaguaia lembra do famoso desconhecido “Máquina Vermelha”, que era o time da USP na década de 70. Claro, o uniforme era todo vermelho. “Era uma máquina com cacófato e tudo cuja maior alegria era surrar o Mackenzie em campeonatos universitários”.
Negrões parrudos, bem vestidos, perfumados de Lancaster, relógio de ouro, pulseiras idem, saindo de Fissoris amarelos, Karmann Ghias vermelhos, Mustangues cor de sangue, Simca Chambords marrons… Roupeiro, massagista, técnico e toda tralha de jogo, vinham num Aero Willis azul e branco. Nome do time: SERENO. Lembrando madrugada, boemia e alegria. Composto de veteranos profissionais, jogadores em fim de carreira, outros em atividade, mas afastados por indisciplina, outros de folga. Era um time poético, de boêmios, amigos que se reuniam para jogar sem as exigências do profissionalismo, podendo beber, cantar e fazendo footing nas praças do interior desfilando seus corpos gigantes para as mocinhas locais e poderem jogar com alegria. Como todo boêmio que se preza eram amáveis. Viam no futebol o romantismo que não mais aparece. Um dos craques que nas suas folgas jogava no Sereno era o Servilho do Palmeiras.
Se o nome era lindo, o uniforme era mais ainda: camisa azul celeste, calção e meião azul escuro, estrela como símbolo e os números nas costas em algarismos romanos, em preto. Coisa única e inesquecível. Marcavam jogos pelo interior de São Paulo, com uma única exigência: após o jogo, confraternização, ou seja, churrasco, muita cerveja, música e cachaça.
Sereno entrava em campo para acabar com o jogo em 20 minutos. Nesse tempo o time era uma avalanche de trocas de passes, deslocamentos, firulas e o escambau. Mas também se não fizessem o placar neste início, relaxavam e já começavam a pensar na festança pós-jogo. E cansados viravam presas fáceis e dóceis.
Assim como todo sereno é passageiro, como uma névoa momentânea e mágica desfila num adeus entre as arquibancadas varzeanas da noite, deixa-nos por instantes um estádio vazio no peito e saudades por onde passou.

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