Bola de pano

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Talvez Galileu tenha dado sentido à bola ao dizer: “Apesar de tudo, se move”. Mas, nos diz a história que foi na Grécia os primeiros indícios de um jogo de bola com os pés, denominado “episkuros”. Nascia a primeira bola (ainda orgânica): uma bexiga de animal, cheia de ar.
Quando as legiões romanas dominaram e ocuparam a Grécia, no ano de 150 a.C., o episkuros migrou para Roma e recebeu o nome de “haspastum”. Cada equipe se colocava junto a uma linha num campo. Assim todos se precipitavam sobre a bexiga de animal, já revestida e costurada com o próprio couro do animal, que podia ser carregada pelos pés e defendida com as mãos entre duas balizas. Por sua vez, os romanos levaram a outros povos o seu jogo de bola. Na Idade Média chegou à Gália e depois, na Bretanha, surgiu o “soule”, praticado com uma bola de couro cheia de feno ou farelo, em que era permitida a distribuição de socos e rasteiras. A disputa terminava às vezes em morte, surge à expressão: “violento esporte bretão”, hoje com certa tendência a voltar ao que foi.
A bola rolou o mundo em suas formas e estilos até chegar às mãos do filho de um inglês, o brasileiro Charles Miller. Mas isto tudo é história. Histórias por onde a bola rolou, às vezes a favor, ora contra a rotação de sua mãe Terra, até chegar por entre gerações aos pés de cada infância.
Mais conhecida por “bola de meia”, a bola de pano rolava macia e silenciosa voando no ar como um astro qualquer que cumpre sua rota. A massa celeste que carregava em seu núcleo era composta de matéria feita de meias velhas e retalhos de colchas e fronhas, lá de onde vinham os sonhos já sonhados pelos meninos coloridos da rua de barro.
Jogar bola na rua era literalmente jogar em casa. Conhecíamos os buracos e as saliências palmo a palmo da rua. O difícil era driblar não só os adversários, mas a cachorrada que insistia em morder a bola e fugir com ela. Quando não, era a Rádio Patrulha, acionada sempre por um vizinho reclamão à procura do objeto do crime barulhento, a bola. A baratinha saía, o jogo recomeçava.
O portão de aço da garagem da senhora mal humorada era feito de gol, estalava a cada chute direto. Entre os gritos de alegria dos moleques, ouviam-se os resmungos e os palavrões em italiano de Dona Angelina.
Não me canso de lembrar, aqui na vila da bola, no bairro de futebolistas, a nossa Vila Madalena teve três campos de futebol e inúmeros times, tais como o raçudo Leão do Morro, Sete de Setembro, 1º de Maio, Estrela de Pinheiros, União Operário, Serra Negra, 22 de Abril, Brasil de Pinheiros, o Vasquinho e mais alguns que não chegaram a se formar. Resistiram até o final da década de 1960, quando foram aos poucos extintos.
O mundo girava mais lento, assim como nossa bola de pano. Tento lembrar deste mundo já remoto, onde não havia tantos controles remotos ou nenhum, muito menos Internet ou celulares. As mães hoje telefonam para os filhos entrarem ou para jantar, antes era tudo no grito, mais interessante, sei lá, os nomes dos meninos trançavam as ruas de lado a lado em ecos de: “Vem jantar! Hora do banho! Seu pai chegou!”… Depois as mães cuidavam de nossos hematomas com “Violeta Gengiana”, um bálsamo para os seus pequenos guerreiros da rua e uma colher de sopa de Biotônico Fontoura, assistir na TV em branco e preto o seriado do Bat Masterson ou girar o seletor de canais para ver a luta livre do temível Phantomas. Achávamos meio veado o magrelo Ronnie Von jogando aquela franjinha de lado segurando com fervor o microfone. Depois ir para debaixo dos cobertores Paraíba e sonhar que os peitos de Cláudia Cardinalle eram os nossos travesseiros.
O ciúme da bola de pano não tardou a chegar. Sim, o ciúme murcha, enruga e achata. Assim ficou nossa bola quando chegou a “bola de capotão”. Couro marrom, maior e pulava mais. Tínhamos que passar sebo nas costuras e no couro para não rachar. No grupo escolar havia a bola de salão, pequena e dura. Recheada com crina de cavalo. Só podia dar bicuda nessa bola, peito de pé nem pensar.
Mundo gira e a bola rola. Lembro sempre aquela bola de pano. Os sonhos que fez sonhar, os gols que não fez, a história que contou sob nossos pés, as vidraças que quebrou, as rotações que deu girando em torno de si e ao redor do sol através dos tempos, pois, apesar de tudo, se move e assim como tudo, passa.

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