A vida cultural que eu nunca vi

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Pedro Costa

O saber é diferente quando a ausência é inevitável. Seja por circunstâncias ou mera distração. O fato é que em tudo que é evento aqui na Vila, estive quase em todos, ou melhor, ao lado, sempre num bar ou padaria mais próximo do local em foco. Uma certa identidade com a periferia, o entre, o ao lado, ora tecendo considerações, ora observando os biotipos, a fauna e flora Madalesca. A época era propícia, principalmente.
Odaras, ponchos e congas, bichos-grilo, vaga-lumes, beronhas e libélulas pairavam sob o solo da Vila ao redor de qualquer evento, deixando o lado de fora muito mais legal do que acontecia internamente. Era só desligar por entre as “pissoas” e dizer um longo olá Tibetano “e aiiiamm”. Estava dita a senha para adentrar em qualquer papo metafísico ou existencial.
Itamar Assumpção inaugurava seu show no Teatro Lira Paulistana. Eu e meu amigo Zé Eduardo não poderíamos ficar de fora. E ficamos. A padaria ao lado, esquina com Teodoro Sampaio e rua Lisboa, estava em polvorosa, uma verdadeira Torre de Babel tupiniquim. Patchoulís, alfazemas e cigarros de cravo, davam o aroma daquele reencontro de iguais desconhecidos, brindados com o: “E iaiiiamm”. Eu e o Zé, igualmente felizes no apertado balcão da padaria, entre genebras e cevadas, dávamos as boas vindas para a moçada que não parava de chegar. Depois percebemos o porquê, pois a moçada que lá estava metade sem grana para entrar e a outra metade não cabia no pequeno Lira Paulistana. Quando interrompi o papo meu e do Zé para os ouvintes maravilhados com a plantação de repolho em nosso sítio fictício: “Gente, o repolhal na primavera é lindo” e a cada deslumbramento nosso e alheio, ouvimos uns: “Odicrer, cara “. Notamos que a população da padoca aumentara em muito. A moçada entrava e dizia: “Olha us cara inda iiiaam…”. Não que nossas estórias estavam ficando boas a cada invenção e endosso mútuo, é que o show do Itamar já havia acabado há tempos. Havíamos perdidos mais um show. O Zé tentou me consolar dizendo que em compensação demos um belo espetáculo. E seguimos pela madrugada subindo rindo os morros da Vila Madalena.
Também não poderíamos perder a Primeira Feira da Vila. E perdemos. O boteco do Mojica era excelente. Ficava na Inácio Pereira da Rocha, final do Cemitério São Paulo, onde hoje é a Oficina de Pizza. Para variar nós dois, eu e o Zé, de pé no balcão de bunda pra rua papeando com o Mojica. Papo sério. O Mojica era sério, não ria. Com aquela cara antiga de bigodinho fino, parecia mais um jogador de futebol da década de 30 dentro do balcão. Juntos nós três, descíamos o pau no então presidente-general Figueiredo, assim o papo com torresmo e dominó entrou tarde e noite adentro, quando notamos que jatos de água lavavam as ruas da Vila e a feira já havia acontecido. Na rebarba dos que desciam indo embora, tomávamos mais umas brejas, pegando algumas notícias do que rolou dentro da Feira da Vila. Prometemos que no ano seguinte, não deixaríamos de estar presente. Não preciso dizer que deixamos.
O tempo é um aliado da amizade. Mas, se não refizermos sempre o caminho de cada amizade, como pegadas na praia, o próprio tempo apagará este caminhar. Assim eu e o Zé Eduardo percorremos até hoje nossos caminhos, não importando novas distâncias, nem novas praias. Ou “quem fica sentado na praia não faz pegadas, bicho!”

Novidades e lançamentos sempre eram e ainda são iniciados ou testados primeiro aqui na Vila Madalena. Surgiu um músico-pintor, Aguilar e Banda Performática. Imperdível. Para a ocasião, pedi emprestada a bela camisa modernista do meu amigo Zeca Bahia, que me recomendou vários cuidados, pois era a sua “camisa de show” para às vezes em que se apresentava em palcos. No dia esperado, lá estava eu com a camisa do Zeca. Concentrado em entrar, sem muito papo. Abriu-se a porteira. O som vai começando pesadão, luzes e telas brancas, o maluco mandando latas de tinta para todo lado. A camisa do Zeca dançou logo de cara. Bafafá, bate-boca, era eu ou o cara. Para o bem do início do show, acabei na padaria do lado contando o caso para o português, que não estava nem um pouco interessado. Enchi a lata, batendo papo com os “penetras” que não conseguiram ingressos na faixa, ao mesmo tempo jogando palitinho com o segurança da casa.
A inauguração do Teatro Brincante era o acontecimento do ano na Vila. O genial Antonio Nóbrega realizava seu sonho. Tudo certo para a festa na Rua Purpurina. Se não fosse o Zé reparar na TV da padaria Impala. A trinta metros do Brincante, ligada no clássico que passou batido: Corinthians e Palmeiras. O danado do Nóbrega devia ser São-Paulino, pensamos. O primeiro tempo foi na Impala, o segundo na casa do Zé.
Nos céus chegava a hora, o ano e a vez do esperado cometa Halley. A cada setenta anos dando o ar da sua graça. Na Vila os malucos faziam até plantão olhando para cima. Foi no bar do Renato, no Sujinho, que o Piriri elegeu sem eu saber o telhado de casa, lá da rua Turí, para que a moçada “inscrita” fosse esperar o cometa lá pelas tantas da madrugada ao som do meu violão. Um dia antes o Piriri me comunica. Era tarde para não gostar. Acabei curtindo a idéia. No horário confirmado de Brasília, através do observatório da NASA, lá estavam no telhado da Turí, Piriri, Nica, o Mineiro levando gente com a sua moto-táxi, pentax nas mãos, binóculos com um e mais um tanto de gente que eu nunca vi. Slips, cobertores e almofadas viradas para o céu. Clima de lual. Piriri romântico cantando Raul Seixas, Silvinho Vaz solando um violão de duas cordas. Tudo sonoramente tranqüilo com o céu estrelado. Chegava a hora do Halley. Piriri saca uma cachaça 51 com cogumelo de Iacanga dentro. Curtido especialmente para ocasião, disse ele. Em minutos, de gole em gole, de boca em boca, zera-se a garrafa. Uivos e latidos, de todos os lados. Uns vomitando, outros pulando do telhado na grama. Improvisei na pequena sala uma enfermaria de campo. Piriri começa a achar que o cogumelo era venenoso, o outro achava o troço maneiro, o restante passava mal. Eu mandava café amargo para todo mundo.
Foi-se o Halley também. O cometa passara. Partiu. Apenas deixou estórias para contar a quem nunca o viu.

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