Perfurando a superfície

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Umuarama (PR), um pólo importante de criação bovina, tem cerca de 90 mil habitantes. E lá, no dia 3 do último abril, segundo testemunhas, o estudante de veterinária Thiago Lima ateou fogo a um cão vivo. Ele teria assumido o crime “de forma fria”, alegando ter assim agido porque Fred, o cão, queria cruzar com a cachorra de sua propriedade que se encontrava na fase de cio.
O fato fez chegar às autoridades locais e à UNIPAR, universidade da qual Thiago é aluno, mensagens de todo o Brasil pedindo, além da sua condenação, sua expulsão do curso de veterinária. A UNIPAR se recusa a expulsar o aluno antes que ele seja julgado culpado pela Justiça.
Fred, um cão dócil – conforme os veterinários que o assistiram – veio a morrer, vítima de queimaduras de 1º a 4º graus, após 17 dias de sofrimento intenso, internado na clínica SOS Animal. Ele havia sido levado até lá pela presidente da SAAU (Sociedade de Amparo aos Animais de Umuarama), Iracema Drummond, que também denunciou o crime. O advogado Rogério Gonçalves, membro do FNPDA (Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal) foi até Umuarama para acompanhar o processo. Recentemente, na mesma cidade, um mendigo sofreu atentado semelhante, felizmente bem mais leve, quando teve sua barba queimada. O mesmo jornalista de Umuarama, que deu forte apoio à atitude da Proteção no “caso Fred”, apontou a inação que se seguiu após o caso do mendigo.
O refrão, que protetores ouvem sempre, desta vez passou de raspão: por que não cuidam de humanos carentes em vez de animais? Este raciocínio reflete, no mínimo, a má-vontade que se esconde sob a superfície do chavão. Socialmente, necessidades e poderes interagem. O voluntariado que nos últimos anos se fortaleceu no Brasil é força que substitui, ou desafia, ou entra em parceria com os poderes estabelecidos. Cada grupo de consciência cuida da carência que escolhe como missão aliviar. Por exemplo, no âmbito dos humanos, o que seria dos aidéticos se as ONGs só olhassem pelos cancerosos? Na verdade, a Proteção Animal é a órfã do movimento voluntário. Não recebe incentivos fiscais como outras, ou mesmo a sua prima, a Proteção Ambiental. Esta, só incidentalmente, lembra dos animais – os silvestres – por eles terem seu habitat ameaçado pela devastação. Mas a Proteção Animal não se nega a lhe estender a mão. A cobrança feita a esta, ou o ridículo com que tentam envergonhá-la, desenha – ao observador atento – quão longe vai o antropocentrismo (o homem como centro do universo). As pessoas menos desapegadas não conseguem perceber a importância dos seres vivos de todas as espécies. Perceber é mais do que compreender ou sentir. Só alguns percebem. Talvez isto explique porque pesquisadores sejam capazes de deixar por dias o crânio de um animal vivo à mostra com eletrodos nele ligados para comprovar uma tese: eles se tornaram máquinas de pensar. O cérebro de um animal exposto ou o estofado de um colchão rasgado significam para eles meras coisas a serviço do homem.
A revista Terra (janeiro/04) publicou matéria longa sobre a “comprovação científica” da inteligência dos animais. Pra quem convive com eles, soa como a descoberta da pólvora. Com exceção da de que há formas de inteligência até mesmo em organismos unicelulares, como os paramécios. A revista Superinteressante (março/04) mostrou o importante papel ecológico desempenhado por ratos, moscas, baratas e até larvas de pernilongos. Sem esses, no mínimo, os esgotos entupiriam, peixes morreriam e as águas de lagos e rios apodreceriam. Ninguém está aqui por acaso. Noutra matéria expõe e discute a utilização de pessoas como cobaias de remédios (no fundo, todos nós) e lista seus direitos; mas nem menciona o sofrimento cruel por que passam os animais de laboratório. Mas traz na última página um artigo primoroso, “O Preço da Carne”, do jornalista Dagomir Marquezi, onde denuncia as diversas formas de tortura que – tanto orientais quanto ocidentais – impingimos aos animais de consumo; e aponta seus resultados, como o mal da vaca louca e a gripe do frango, que combatemos com o massacre brutal das vítimas que nós mesmos criamos.
Quem sabe se Thiago Lima é portador de uma sociopatia aprimorada numa região onde se enxergam os bovinos tais quais mercadoria inerte, ou aguçada pelo uso de animais vivisseccionados nas aulas da faculdade de veterinária? Bom proveito seria perfurar a superfície e dolorosamente encarar o nosso avesso, tão semelhante aos dos nossos dessemelhantes doloridos e… percebê-los.

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