Noite sem lua

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Pedro Costa

Levas de imigrantes procuravam em terras novas erguer suas tendas de trabalho, ansiosos para construírem novamente seus lares, após a grande guerra, que devastou os campos da Europa inteira.
O café e as ferrovias paulistas de vento em popa. São Paulo, a cidade maravilha, já nas primeiras décadas do século XX, furava o espaço com suas inúmeras chaminés. O aumento da população urbana determinado pelo grande afluxo de imigrantes italianos. A cidade recebia milhares de imigrantes de todas as classes e raças.
Era a formação de uma cidade cosmopolita. Surgiram novos bairros. A maioria da população era composta por estrangeiros. Gente, gente de todo tipo chegava a todo instante.
As profissões ainda inexistentes começavam a existir. Cocheiros, gráficos, tecelões, moldureiros, alfaiates, marmoristas, escultores, carpinteiros. As moradias então, seguiram modelos europeus. Em pouco tempo a explosão dos bairros alastrou-se. Os portugueses destacavam-se no gênero alimentício. Os padeiros, confeiteiros e curtidores de couro eram geralmente franceses e alemães. Logo apelidados de turcos, os libaneses e os sírios, motivo este, porque seus países estavam ocupados pelos otomanos e assim seus passaportes eram turcos, lembra-me isto sempre, o amigo Henrique Chaguri, formando verdadeiros exércitos de mascates, vendendo de porta em porta tecidos e utensílios.
Os bairros começavam a ser identificados com a origem desta gente. Bom Retiro, junta imigrantes árabes e judeus, quem diria, só mesmo São Paulo para conseguir isto, e se dedicam juntos ao comércio atacadista de tecidos, armarinho, “lojinhas”, e confecções de roupas. Brás e o Bexiga tornaram-se famosos pelas festas populares, pelos restaurantes, bairro onde nasceu este “picolo” cronista. Aliás, o meu sobrenome “Costa” é porque meus avós vieram da costa da Calábria, portanto sou de origem italiana. Assim muitos sobrenomes, surgiram do lugar de onde vieram, ou do ofício que exerciam.
Os cobradores de bondes, eram os bigodudos portugueses em maioria. Os italianos também, boa parte, no comércio de ferragens, funilaria e calçados.
A Bela Vista, tinha um perfil diferente, sem fábricas, bairro pequeno, de maioria negra e italiana. Antes chamado de Bexiga, devido a uma epidemia de varíola em 1902, doença que formava “bexigas” na pele. Pela manhã o bairro, ficava vazio. Todos iam trabalhar nas industrias, no Brás, na Moóca e as empregadas domésticas seguiam para o Campos Elíseos, Avenida Paulista ou Higienópolis, onde moravam os patrões. No fim da tarde, quase noitinha, as calçadas acolhiam as cantorias, brindes de vinho, dança, capoeira, briga de famílias, sopa, macarronada e bocha em seguida.
A classe média espalhava-se por Perdizes, Pinheiros, Consolação, Vila Buarque, Vila Madalena, Santa Cecília. Bairros como Lapa, Água Branca, Brás, Bom Retiro e Liberdade, tinham o maior número de imigrantes, os operários moravam perto das indústrias.
Onde está hoje a Pinacoteca do Estado, era o recém criado Liceu das Artes e Ofícios de São Paulo, que formou em todas as áreas mão de obra especializada. Era São Paulo, que não podia parar. Sempre tendo muita gente querendo trabalhar.
O leitor, pensará: “Onde ele quer chegar com esta ladainha?” E vou responder: Como todo Pedro tem fama de pescador, deste mar de histórias pescarei um único peixe para este cesto, o balaio desta crônica, entre tantos navios de imigrantes que aqui aportaram, o que nos interessa agora é o “Tomasso de Savoia”, verão o porque. Acontece que entre tanta gente boa, vem também, como diria, muito “impeastro” junto, era ele, o próprio, Amleto Gino Meneghetti, o mais célebre dos gatunos, o príncipe dos ladrões, o homem borracha, o gato dos telhados. O primeiro roubo foi aos 11 anos, em Pisa, na Itália. Garoto precoce, simulou loucura quando convocado para o serviço militar italiano. Fugas freqüentes de Pisa, Florença, Ilha de Córsega. Saltando e saqueando pelos telhados. Atuou ainda na Riviera Francesa, em Cannes. Em meados de 1913, já com 35 anos de idade, chega ao Porto de Santos, no Tomasso de Savoia. Já chegou sendo preso por roubo onde passou. A ele atribuíam agilidade de felino, ganhou fama de Robin Hood da Paulicéia, diziam que roubava dos ricos para dar aos pobres. As autoridades brasileiras na época destinaram Meneghetti para trabalhar como pedreiro na construção da solitária da cadeia. Obviamente caprichou para menos, deixou as grades suficientemente frágeis. Um dia provocou uma briga e foi mandado direto para a solitária. À noite, cantando em voz alta para inibir os ruídos, fugiu mais uma vez.
Deslocava-se com facilidade e astúcia. Atuou no sul, Curitiba, Porto Alegre, Ponta Grossa, Uruguai e na Argentina, bem como, Rio de Janeiro, e quase toda Minas Gerais.
Ao mesmo tempo escrevia para os jornais. Dizendo-se anarquista, desafiando e ofendendo direto a polícia paulista.
Dizem que as mocinhas da época o achavam atraente e galanteador. Certa feita, para prendê-lo, armou-se um grande cerco ao redor de uma cantina, onde comemorava um “golpe” bem sucedido. Feito o cerco, pouco depois, do alto do telhado, o ladrão gritava para a multidão e os policiais: “Io sono Meneghetti! Io sono Cesare! Io sono Nerone di San Paolo”, daí o Nero de São Paulo passou 19 anos no Carandiru, onde se divertia insultando as autoridades que visitavam o presídio. Já com coluna mensal no Diário da Noite, publicando suas cartas dirigidas a sociedade paulista.
Mais tarde, Meneghetti obtém do prefeito Ademar de Barros autorização para montar uma banca de jornal na Avenida Ipiranga. Mesmo assim, continuou roubando. Orgulhava-se em dizer que nunca praticou um ato de violência, roubava com maestria, gabava-se. E apenas roubava dos “afortunados” das classes dominantes. Pois bem, caro leitor. Este safado, rodou o planeta todo, bateu carteiras pelo mundo afora, “o homem dos pés de mola”, era preso pela última vez, em 1970 no dia 14 de junho, aos 92 anos de idade, e sabe onde? É isso mesmo. Aqui, na Vila Madalena, depois de roubar a Europa, América do Sul inteira, o velho gatuno acabou aqui na Vila, onde tudo acontece. Ao lado da Livraria da Vila, na Fradique Coutinho. Tem lá uma placa fixada, para conferir.
Quem o prendeu, foi o Inspetor Capua, primo-avô do nosso morador Adilson Zuppo.
Perto dali, no então “Bar do Dominó”, onde o pessoal da Vila costumava ficar, mais tarde virou “Bar Olívia”, agora “Posto 6”, dentro do balcão, Seu Francisco Augusto Ferreira, português, que hoje trabalha com o simpático italiano “Seu” Ênio, na Fradique. No Bar do Dominó que lá ficou desde 1957 a 1990, naquela noite, ouviu os rumores: “Pegaram o Meneghetti”! “Seu” Chico baixou as portas mais cedo. A noite estava escura. A lua perecia ter sido roubada do céu da Vila Madalena.

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