Não se diga amém

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Credita-se aos termos latinos religare, religionis (religar, religações) a origem da palavra religião; àquilo que religa o homem ao sagrado, a Deus ou aos deuses. Esta religação se faz através de rituais próprios a cada crença. Nos primórdios da civilização a imolação de seres vivos – de humanos e de animais – era prática usual. Com o decorrer do tempo e o estabelecimento do respeito à vida como um valor fundamental, tais sacrifícios foram sendo substituídos por símbolos: na religião católica, por exemplo, o sangue e o corpo de Cristo pelo vinho e pela hóstia. A frase proferida durante a Missa – “cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo” – remete ao antigo costume ainda persistente em algumas religiões fundamentalistas. E fundamentalismo significa observância rigorosa a costumes antigos, para não dizer antiquados.
A imolação de um humano ou de um animal, à luz da moral, que chamaremos de universal, só tem uma diferença: a vítima. Aqui se apresentam processos distintos, dignos de pesquisa psico-social: o do contexto social-religioso que produz o crente numa religação, através da morte do outro, com o sagrado; o processo de insensibilização que se instala no autor do sacrifício; o do sacrifício em si, revestido de maior ou menor grau de crueldade contra o imolado. Alguns se identificam com o autor e suas razões; outros, com as da vítima.
O processo de identificação com a vítima, quando humana, é notável nas pessoas ditas normais: o antropocentrismo se encarrega de fazê-lo líquido e certo. Quando a vítima é um animal, as opiniões, sensibilidades e crenças se dividem. A noção de que a vítima é desprovida de inteligência ou capacidade de falar fornece a uns tantos o argumento de que, em nome da fé, o sacrifício é legítimo. Se transpuséssemos o mesmo argumento para os loucos, deficientes mentais e mudos, o que restaria dele? A dor é democrática: ela iguala seres desiguais. O pavor da morte iminente, intensificado pela dor de um processo cruento, já foi detectado pela dilatação das pupilas dos bovinos quando entram no corredor que os leva ao ambiente final do matadouro; o mesmo fenômeno físico nos acomete em momentos de pânico. O que denuncia que a dor dos animais vai além da dor física. E que eles percebem e antecipam o sofrimento. Como nós.
Sabe-se que assassinos seriais costumam ter antecedentes de crueldade contra bichos. O noticiário se encarrega de mostrar como sacrifícios humanos ainda são praticados por alguns cultos. Em ambos os casos, os animais são campos de treino. O processo de insensibilização diante da dor e do sofrimento do outro começa aí.
Alegar que práticas de sangue e dor sejam preservadas por serem componentes tradicionais de uma cultura, religiosa ou profana, é desprezar a história da evolução humana e do estabelecimento dos conceitos humanitários. A escravidão, que favoreceu as elites rurais nas culturas do algodão, do café e do açúcar – aqui e noutros países – pode servir de exemplo. Em nome da preservação destas culturas – não só na acepção de cultivo agrícola – quem hoje se atreveria a defender a servidão? Até a sua abolição teve que haver a evolução de mentalidades a par da luta contra privilégios de uma minoria. Nela havia a prática do chicoteamento, do uso das mulheres como objeto sexual, do assassinato impune de escravos altivos. Diante delas, agora, quem diria amém?
A luta do Movimento Negro para assegurar seus direitos de cidadãos é altamente meritória. Mas defender ritos cruéis contra animais, em nome da liberdade de culto religioso, só depõe contra ela. De um lado, nossa Constituição assegura a liberdade de culto. De outro, proíbe crueldade contra animais. Mas acima do que seus artigos expressam há o espírito condutor que ela seguiu: o respeito aos valores essenciais da vida, do meio ambiente e da civilização.
É dificílimo fiscalizar o que acontece nos terreiros, do ritual do bori (quando há a aspersão do sangue dos animais sacrificados sobre a cabeça dos participantes) a outros mais, onde e quando só os iniciados podem entrar. Mas sabemos do estado em que são encontrados animais em cemitérios e locais próximos a terreiros. As aberrações cometidas contra eles são indefensáveis.
Agora, no Rio Grande do Sul, os deputados estaduais, através de PL de Edson Portilho (PT) aprovaram a autorização do sacrifício de animais em rituais religiosos de matriz africana, por pressão de seguidores destes cultos. A aprovação contraria o Código de Proteção dos Animais, estadual, de autoria de Manoel Maria (PTB).
O Movimento de Proteção Animal espera que o Governador G. Rigotto não diga amém à institucionalização da crueldade. E faz também pressão. Há uma petição on-line contra a sanção da lei. O leitor pode assiná-la em www.petitiononline.com/rs002/petition.html.

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