Pedro Costa
Quase sempre no silêncio da imagem do espelho, vejo seu contorno sobrepondo meu rosto. Em algumas atitudes a tomar, ouço sua voz no lugar da minha. Lições que ficaram. Simbioses do afeto. Saudades sem cura.
No quadro desta lembrança, deixarei a primeiro plano, apenas o homem inventivo que foi em sua época. Durante muitos anos o radialista apresentava pelo microfone da Rádio Nacional de São Paulo, sempre ao vivo, o “Programa Meditação” às dezoito horas e a meia noite, ia ao ar “Por todos os Caminhos”, com o “Cronista do Coração”, Pedro Geraldo Costa .
Ainda criança via pelo vidro dos estúdios da Rádio, na rua das Palmeiras, os gestos e a voz compenetrada, os olhos atentos na lista dos anunciantes. As mãos rápidas em funções diferentes, uma colocando discos, a outra o braço da vitrola, embalava a rotação, subia ou abaixava o volume, lia o anúncio e voltava ao texto improvisado. Numa destas acrobacias do locutor, foi para o ar, um enorme “ai”, percebido em bom tom, à todos que ouviam naquele momento. E o velho locutor, sem perder o rebolado, com o dedo sangrando emendou: “Ai, ai, ai, ai… que oferta imperdível, a sapataria Novaes coloca meia sola a preço de banana”… É que as agulhas da vitrola eram verdadeiros pregos afiados, e o dedo era sempre a vítima.
Nos corredores da Rádio Nacional, passei grande parte da infância. Fascinava-me a correria, o apego das fãs, os curiosos, e os imensos equipamentos e transmissores a válvulas. Não haviam os grandes anunciantes, como a Coca-Cola, ou a Souza Cruz, apenas os pequenos comerciantes, como alfaiates, sapateiros, camiseiros, açougues e padarias, eram anúncios de consertos de relógios não de marcas de relógios… E o locutor, era o contato comercial da rádio, aquele que ia atrás convencer o pequeno empresário a anunciar, era também o tocador de disco, o discotecário e o locutor ao mesmo tempo, e os programas somente “ao vivo”, pois ainda não existia o “feedback”, a gravação. Os programas de rádio tinham auditórios para os fãs “assistirem” o seu programa favorito. Os menores de idade, ficavam de fora, grudados no vidro grosso e duplo dos estúdios, como janelas do tempo, assistia-se o futuro.
Eram os galãs do rádio. Seus vozeirões graves pausados e envolventes, umedeciam as senhoritas de pudor, construíam lugares jamais pisados pelo homem, transportava pela voz todos os ouvintes numa viagem sem fim, romântica, de sonhos e delírios. Era o mistério do rádio produzindo um filme sem imagem, fazendo-nos sonhar sem ter de abrir os olhos, apenas os ouvidos. E neste cenário, o locutor erguia diante de nós, com música de fundo e frases de efeito, transportando todos ao mundo da imaginação, numa mágica sem truque, num sonho sem farsa, ao vivo, rumo a terras nunca antes habitadas. Geralmente eram homens magrelinhos, outros de estatura baixa e gordinhos, que de galã restava apenas a voz imensa e potente, ao contrário que as fãs imaginavam, estas vozes tinham “vida própria”. Passeio de Paulistano na época, era passar nas rádios para ver o locutor trabalhar.
Tanto a recém inaugurada TV, que não dispunha de profissionais, requisitava o pessoal do rádio e os locutores. Líderes de audiência, eram constantemente convidados pelos partidos políticos, não só pela popularidade, mas também pela destreza em expressar-se em público e falar de improviso. Surgiram nessa época grandes oradores, comícios memoráveis, duelos de palavras e idéias, como Raul Duarte, César Ladeira, Renato Macedo, Emílio Carlos, Nelson Silva, Tácito Monteiro,Otávio Gabus Mendes, Pagano Sobrinho, Blota Jr, Pedro Geraldo Costa e outros tantos imigrando para a TV ou para a política local, todos porém, sem abandonar o velho microfone apaixonante do rádio. Irradiavam tudo. Missa, futebol, corrida de cavalos, luta livre, bailes, noticiários, shows de circo…
Pedro gostava mais das campanhas eleitorais dos palanques e na tribuna nunca faltava, do que o exercício do glamour de parlamentar. Eram campanhas criadas sem nenhum recurso financeiro, na raça, apenas usava a criatividade. Os mais velhos lembrarão com certeza, quando o Pedro fez um enorme telescópio de papelão, pintado de preto apontado para o céu no Viaduto do Chá, com um homem de branco apontando aflito e olhando pelo visor, filas imensas a todo instante se formavam para olhar o novo astro anunciado, quando o pedestre olhava no telescópio lia-se: “Para Deputado Estadual, Pedro Geraldo Costa”. Uma outra campanha, diante de tantas faixas de outros candidatos na Praça da República, a sua é que chamava mais a atenção, em baixo da sua faixa, um bambu do mesmo tamanho cortado no meio cheio de alpiste e farelo, assim todos os pássaros e pombas da praça ficavam disputando sua faixa. Estava sempre virando notícia. Sabia como ninguém sair na mídia, sem gastar um tostão. O que não tinha.
Certa feita, pediu que eu lhe acompanhasse até o mercado municipal. De um amigo ganhou o que foi buscar, uma fêmea de peru, isto mesmo, uma ave perua. Saímos a pé, ele segurando com uma cordinha a perua viva pela calçada. E os três seguindo juntos, rumo ao Vale do Anhangabaú, um gordinho simpático de terno e charuto, um menino perplexo e uma enorme perua desengonçada, juntos, como um hipotético filme de Fellini com Charles Chaplin. Curiosos, jornalistas, fotógrafos e redes de TV, vinham e perguntavam o que era aquilo. E Pedro respondia: “Os outros candidatos têm suas inúmeras peruas (kombis) andando por ai, eu como não tenho nenhuma, ando com a minha”. Depois numa outra, candidato a prefeito, nos programas de TV, exibia sempre um paralelepípedo, e seu slogan era “Pedra no buraco e Pedro na Prefeitura”, época esta que ganhou o então prefeito Faria Lima, e Pedro em 3º lugar, acima de Franco Montoro e Laudo Natel, dois favoritos.
Sempre entre os mais votados, foi quatro vezes vereador por São Paulo, Quatro vezes Deputado Estadual e uma vez Deputado Federal, no entanto preferia ser chamado simplesmente de “radialista”, por amor ao rádio.
Quando o Pedro passava pelas ruas , todos faziam o sinal de “positivo”, na sua velha caminhonete Marta Rocha, estava escrito em letras grandes: “Ao ver o Pedro, levante o dedo”. De estatura baixa, gordinho, fumando o seu charuto, sempre de terninho, chegava nas rodas e em lugares públicos, com a sua gravata virada, aparecendo a etiqueta. Num gesto natural, a pessoa virava a sua gravata, e nela estava escrito: “No lado direito, Pedro para prefeito”.
Com isso, eram campanhas limpas e alegres que ele promovia, com suas invenções. Uma de suas centenas de frases, entre elas o famoso slogan: “Maria sai da lata” e “Se cada um cuidar da limpeza, a cidade será uma beleza”. Nunca pixou um muro, não colava cartaz em poste, não ofendia ninguém, nem emporcalhava a cidade inteira com santinhos, muito menos ficava aos berros em alto-falantes, nem havia faixas suas penduradas em postes e árvores.
Apesar da pessoa digna, honesta e humana que foi, deixou em mim um orgulho grande de ser seu filho e um prazer enorme de espalhar suas estórias por onde passo. “Pedro amigo, conte comigo”.
Além de mim, meu filho caçula que não o conheceu, leva o seu nome como um pequeno barco que veio de longe passando por tempestades e calmarias. Nos portos que passou, deixou apenas amigos e saudades e uma bandeira branca levando mensagens de paz e fraternidade em sua pequena embarcação pelas ondas do rádio.
Era 15 de novembro de 1990. Dia de eleição. Entre carreatas percorrendo urnas, cédulas picadas caiam do céu. Flâmulas e bandeiras mil tremulavam na expectativa e em quase silêncio de apuração. Um pequeno corso fúnebre passava pela cidade. Era o dia que havia escolhido para partir.
Ainda parafraseando meu pai, despeço-me, pois o espaço e o tempo são curtos: “Boa noite e até logo”. Até a próxima.