Hamburguer de Jumento

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Em agosto, esta coluna com o título “Da manjedoura ao calvário” publicou as denúncias de Geuza Leitão (UIPA-CE) sobre o abandono e graves maus-tratos sofridos pelos jumentos do Ceará, sem que o governo daquele estado tornasse reais as providências prometidas para reduzir a sua proliferação. A Lei Estadual n° 13.045/00 que permite a doação dos animais apreendidos pelo DERT (Departamento de Edificações, Rodovias e Transportes) apenas para entidades públicas ou filantrópicas estaria sendo desobedecida sob a complacência do governo estadual e estímulos da prefeitura de Santa Quitéria. A Equus Agroindustrial S/A, de acordo com várias declarações à imprensa de seu presidente, Elimárcio de Bastos Belchior, seria a beneficiada, obtendo e abatendo jumentos, outros eqüídeos (cavalos, burros), caprinos e ovinos abandonados para consumo.
Também o consumidor estaria sendo lesado, conforme o relato de Geuza na sua petição para abertura de processo administrativo pelo DECOM, em 21 de outubro de 2004, a fim de apurar tais irregularidades. Desde 17 de Maio, em três reuniões de membros da Equus com a Comissão de Meio Ambiente da OAB-CE, representantes do DERT, do Ministério Público, mais da UIPA-CE, a empresa se esquivara de apresentar os documentos que comprovariam a legalidade do frigorífico. Àquela altura já sendo preparado em Santa Quitéria, utilizando as instalações de uma empresa extinta (CONAP).
Em outro texto, a presidente da UIPA-CE diz que a empresa jamais apresentou nota fiscal da compra dos instrumentos necessários ao processo de insensibilização dos animais antes do abate, conforme ordena a Lei Estadual 12.505/95 em seu artigo 1°: “É obrigatório em todos os abatedouros e matadouros-frigoríficos, estabelecidos no Estado do Ceará, o emprego de métodos científicos e modernos de insensibilização aplicados antes da sangria…, ou ainda por outros métodos modernos que impeçam o abate cruel de qualquer tipo de animal destinado ao consumo”. E no § 1°: “É vedado o uso de marreta e da picada de bulbo (choupa), bem como ferir ou mutilar animais antes da insensibilização”. Além disso, o Decreto Federal 3.279/99 no artigo 17 estabelece multa de R$ 500,00 a R$2.000,00 para quem abusar, ferir, ou mutilar animal de qualquer espécie, com o acréscimo de R$200,00 por cada animal excedente.
Segundo Geuza, a carne de animais maltratados – alimentados pelo lixo das vias públicas, sem as devidas vacinações nem períodos de quarentena – estava servindo de matéria-prima para fabricação de embutidos pela empresa Friboi, em Três Rios (RJ). A mesma empresa que fabrica o sabonete Albany, o sabão Minuano, além de deter a propriedade das marcas Swift e Anglo.
Nas declarações do advogado da Equus, José Martins dos Santos Filho, e dos veterinários fiscais federais diante da Promotoria do Meio Ambiente, registradas em 5 de novembro, se vê discutida especificamente a vacinação ou não dos animais contra a febre aftosa, e a afirmação da existência “de inspeção antemorte pela equipe permanente do Ministério da Agricultura”. Nada se fala a respeito dos exames obrigatórios pelas leis zoosanitárias do Ceará de doenças como anemia infecciosa eqüina, garrotilho, ou mormo a que os eqüídeos são suscetíveis ou transmissíveis ao ser humano. O advogado afirma que as acusações levantadas pela UIPA-CE são improcedentes e prejudicaram o andamento da empresa. Acrescenta ainda que os animais abatidos foram adquiridos da Escola Técnica de Iguatu e de freteiros do Crato e do Piauí, mas “não sabe informar se a empresa recebeu animais por doação”. A autorização do Ministério, segundo os declarantes, chegara apenas para venda da carne dos animais em território brasileiro. Porém a empresa ainda aguardava licença para exportação. Afinal, a fiscalização da carne no mercado externo é mais rigorosa que a levada a cabo no Brasil.
No final de dezembro foi noticiado o fechamento do abatedouro; o prefeito de Santa Quitéria foi cassado por outros motivos. A EAFI (Escola Agrotécnica Federal de Iguatu) que firmara convênio com a Equus em agosto passado para “cadastrar agricultores e fazer o melhoramento genético da espécie para tração e condução de gêneros e pessoas” suspendeu o contrato. O diretor da EAFI, Luis Vicente Sobrinho, declarou-se “surpreso” diante das denúncias veiculadas pela mídia. Elimárcio de Bastos Belchior, o sonhador de grandes lucros para a empresa dirigida por ele à custa dos animais abandonados, saiu da presidência em final de outubro deixando pra trás dívidas trabalhistas e a população de Santa Quitéria revoltada.
Mas, no frigir da carne, cerca de 500 jumentos – só nos últimos dois meses – foram enviados da EAFI para a Equus. E dela, para a Friboi. Sem falar nos recolhidos pelo DERT, nos levados por freteiros, a grande maioria transportada em condições cruéis, como costuma acontecer: pernas quebradas por golpes para que não pulem dos carretos, sofrendo fome e sede sob o calor do semi-árido nordestino; e mortos – quem investigará – por quais processos?
O sofrimento dos jumentos abandonados do Ceará continua, apesar do fechamento do matadouro. Atropelados nas estradas, agonizando – nelas ou nos currais do DERT; sobrevivendo do lixo ou do que o clima não secou. Os resíduos de dor também sobrevivem nos corpos daqueles que comeram mortadela, salsicha ou hambúrguer, do último agosto pra cá. E de outros agostos.
Agora, seria o caso de perguntar ao governador Lúcio Alcântara, o que aguarda os jumentos que ainda insistem em viver e os que virão a nascer, apesar de tudo?

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