“Guardador de Rebanhos”

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Pedro Costa

“Vindos do Campo de Marte, aviões teco-teco traziam e levavam os técnicos das obras da cidade universitária e desciam na Praça Panamericana. A pista era na Pedroso de Moraes. O rio Pinheiros não tinha esse traçado reto, era mais sinuoso. Mudaram o curso do rio e aprofundaram sua vala, antes era tudo alagado, um grande brejo que foi aterrado pela Companhia City, que loteou e urbanizou tudo por ali. Parte daquelas terras ribeirinhas foram da família do meu sogro, Eugênio de Medeiros.”
Assim conta o Inspetor de Alunos, Frankilin Nolla, de 83 anos, há quase 30 só aqui, no Colégio Santa Clara. “Nesta época morava na Cardeal Arcoverde com Mourato Coelho, era cabeleireiro. Tinha 21 anos. Acho o tempo curioso. Havia as dragas enormes, gigantescas arrancando e carregando os bondes cargueiros, a linha 29. Estes bondes levavam a areia daqui, para o centro da cidade. O prédio do Martinelli tem areia dessas bandas. Onde estão hoje o Colégio Santa Cruz e a estação de trem, era área de extração. A gente pescava no rio Pinheiros, era limpo. O pessoal praticava natação.”
Daí veio a oportunidade para o Seo Frankilin trabalhar no Santa Cruz, a convite dos padres canadenses. Ficou apenas dois anos. Tinha de trabalhar domingos e feriados. Então foi parar no Colégio Santa Clara, onde está até hoje e espera comemorar o centenário lá mesmo, diz brincando.
Aqui mesmo já escrevi sobre as pessoas que estão em extinção. Não apenas o mico-leão-dourado ou o lobo-guará. Mas, pessoas desta espécie, com “pedigree” de dignidade humana. Enquanto o Seo Frankilin contava-me a sua vida, pegava-me pensando sobre isso. Hoje a mídia inteira enaltece mais o bandido e o escândalo, seja de gafanhoto, vampiros, laranjas ou qualquer outro corrupto público e esquece do homem comum, correto, que não vende notícia. O indivíduo não mais existe. O plano sujo do bandido, do serial killer, fascina mais que a vida correta do cidadão comum. Apenas antenas antenadas em Datenas. Gente boa não dá audiência, nem vende sabão em pó que lava mais branco.
Aos poucos a voz do Seo Frankilin afastava meus pensamentos. A resposta vinha aos poucos, “Era preciso voltar ao tempo das cadeiras nas calçadas”. Seus olhos brilharam de saudade quando lembrou da “prosa” com os vizinhos após o dia de trabalho, as festas de rua, as fogueiras de São João, as fagulhas de brasa subindo com o riso das crianças misturando-se às estrelas…E o mais curioso, é que, com 83 anos ainda tem esperança do mundo ser outro, ou pelo menos do seu bairro ser o que foi. “Nos descuidamos um pouco, pensando somente na gente”. São 30 anos cuidando todos os dias dos filhos que não são seus e os trata como se fossem.
Hoje as professoras do Santa Clara, Valéria e Viviane que estudaram onde lecionam, ainda são acompanhadas pelo Seo Frankilin, assim como na infância. E tantas outras crianças que hoje são pais de alunos, ainda passam por ele, logo na entrada, onde o reconhecimento torna-se cúmplice deste afeto, entregando nas mesmas mãos os filhos, cujos pais, seus avós também já lhe entregaram.
São três décadas de dedicação. De amor ao próximo, verdadeiro. Para o Seo Frankilin, a professora Agnes, de artes, sempre reserva um papel no teatro da escola. Já foi O Criador do Mundo, Rei Mago, um dos irmãos Lumière, o amigo de Portinari, o Fantasma da Ópera…Na realidade é um anjo da guarda. Um sentinela da infância. Um guardião. Um guardador de rebanhos, como diria o mestre Caieiro, ou talvez um trabalhador paulistano, um ex-cabeleireiro, um cidadão comum. Não importa. A nobreza está no interior da sua pessoa. Sempre disposto e à postos. Porte cordial, postura elegante de gestos humildes e olhos atentos aos pequenos transeuntes. Com um sorriso simpático logo na entrada da escola e seus mudos cabelos brancos exigem respeito. A entrada não existe sem o Seo Frankilin. Ele é a entrada, que transparece o caminho de ida e volta das salas de aula. Neste instante parece representar Moisés, abrindo o Mar. E quando o sinal soa, é um faroleiro dos alunos, sinalizando em pleno maremoto as pequenas embarcações.
As homenagens devem ser sempre em vida. A minha fica por aqui. Por zelar pelos meus filhos, Pedro e Nicole e por ser a pessoa que é. Uma dica: seu aniversário é dia 5 de Setembro. Gente assim, está em extinção, aproveite esta oportunidade única para conhecê-lo de perto. Viva Seo Frankilin!

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