As baladas de um roqueiro

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Kelly Monteiro

Nos anos 1970, em pleno final da Ditadura Militar, um adolescente se aventurava freqüentando shows no circuito underground da música em busca de informações sobre punk rock, um estilo musical que começava a dar seus primeiros sinais. Era Edgard José Scandurra Pereira, ou simplesmente Edgard Scandurra, guitarrista do Ira!, uma das bandas que despontou no cenário do rock nacional na década de 1980 e se mantém, mais do que nunca, atual.
Scandurra conta que, naquela época, ele e Nasi – “um sujeito que se destacava pelas roupas e músicas diferentes que ouvia” -, estudavam no mesmo colégio. Scandurra já havia formado sua primeira banda, chamada Subúrbio, e chamou o Nasi, que já era vocalista, para participar de um festival estudantil. A afinidade entre os dois foi imediata e assim nascia o Ira!.
O LP “Mudança de Comportamento” foi o primeiro trabalho da banda. Mas foi com o disco “Vivendo e Não Aprendendo” que veio a consagração. “Envelheço na Cidade”, “Pobre Paulista”, “Gritos na Multidão” e “Flores em Você” eram músicas obrigatórias em qualquer festa ou “brincadeira dançante”, como chamavam as baladas dos adolescentes da época. Quem está na faixa dos 30 anos, hoje, conhece bem a história: o Ira! marcou toda uma geração.
Ao completar 20 anos, em 2000, o sucesso foi consolidado com o lançamento do CD “Ao Vivo MTV”, gravado no Memorial da América Latina. Foram cerca de 160 mil CD’s vendidos e mais de 21 mil cópias em DVD. Depois disso, Scandurra, Nasi, o baterista André Yung e o baixista Ricardo Gaspa se apresentaram no Rock In Rio 3 para 250 mil pessoas, recorde de público do festival.
Um dos guitarristas mais conceituados do rock brasileiro, estilo é o que não falta a Scandurra, a começar pela parte mecânica de tocar guitarra: canhoto, ele inverte o instrumento sem reposicionar as cordas. No auge dos seus 42 anos, sempre desenvolveu trabalhos paralelos ao Ira!. Um deles foi o disco solo chamado “Amigos Invisíveis”, onde tocava vários instrumentos. Em 1996 lançou o segundo disco – “Benzina” -, mesclando o rock clássico com novas tendências musicais como o techno e o rave music, fazendo uma inteligente e inspirada fusão do rock com a música eletrônica. Este CD deu origem ao projeto de mesmo nome que ele mantém atualmente.
Morando na Vila Madalena há seis anos, Scandurra fala, nesta entrevista, sobre a relação com o bairro e do sucesso do último trabalho do Ira!, o Acústico MTV, lançado recentemente, e que inclui, além de sucessos rearranjados, cinco músicas inéditas: “Por Amor”, “Poço de Sensibilidade”, “Flerte Fatal”, “Pra Ficar Comigo” (versão de Train in Vain, do The Clash) e “Muito Além do Jardim”.

Que estilo musical mais influenciou o Ira!?
No começo foi o punk rock. Depois, a música dos anos 1960 e o hip hop também foram marcantes, principalmente por parte do André e do Nasi. Fizemos uns discos bem experimentais na nossa carreira, uns discos mais pauladas e outros com mais melodias. A música dos anos 1960 foi a responsável por gerar várias músicas românticas. Além do rock, temos muitas músicas que falam de amor. Este lado do Ira! é pura influência de Bee Gees, de Beatles, Rolling Stones… O nosso último trabalho, o disco acústico, realça as melodias das nossas músicas, as poesias, as letras… Uma característica legal do Ira! são os trabalhos individuais de cada um que acabam sempre gerando frutos para a própria banda.

Dá para conciliar esses trabalhos sem perder o ritmo?
Olha, está ficando muito difícil! Eu, por exemplo, tenho o projeto Benzina, que é de música eletrônica. Este projeto cresceu muito, lancei um disco no ano passado, fiz apresentações muito boas como no Skol Beats, no Moto Mix, e apresentações nos clubinhos de música eletrônica. A resposta do público para o meu som é muito legal, aí começam a surgir problemas de agenda. A agenda do Ira! é grande e agora, com o acústico, aumentou a procura por shows. Tento equilibrar as coisas porque gosto muito desse projeto de música eletrônica e fico envolvido mesmo! É mais pessoal, me apresento sozinho, e a estrutura da eletrônica não é como do rock’n roll que tem todo um equipamento, equipes de som…

O Benzina começou com o “Amigos Invisíveis”, seu primeiro disco solo?
Não. Este CD, que lancei em 1989, é um disco onde toquei, sozinho, vários instrumentos: piano, baixo, bateria, violino, guitarra, fiz vocais, toquei percussão, instrumentos que nem sabia tocar, fui descobrir e acabei aprendendo. A música eletrônica veio em 1996, quando comecei a descobrir os clubes, a conhecer a moçada que gostava de música eletrônica, que me apresentou a música, os DJ’s… Pessoas maravilhosas que têm bom gosto musical e conhecem música, não só eletrônica mas rock. Descobri um universo extremamente musical onde as pessoas vêem a música eletrônica para dançar. Não iam aos clubes para paquerar, para beber ou bater papo. Iam com o intuito de dançar. Isso me seduziu muito. Até então, via o rock como uma coisa de atitude, que acabava sendo um movimento musicalmente vazio e que crescia em mensagem. E a musica eletrônica me seduziu por isso. As pessoas curtem a música, vão aos lugares por causa da música e não por causa de atitude… Se tirar o som da pista vai haver um silêncio absurdo porque está todo mundo dançando concentrado na música. É uma coisa meio utópica, da música pela música.

A contestação foi uma marca do rock que se fazia nos anos 1980. Pode-se dizer que isso voltou com a música eletrônica?
Acho que acabou resgatando um pouco. A contestação foi importante pelo próprio contexto da história. Passávamos por um momento de abertura política, a juventude tinha muita coisa para dizer, anseios de liberdade, de protestos, de inconformismo… Isso tudo foi importante para o rock. As letras tinham 70% de importância e a música 30%. Aprendi a ouvir rock com Jimi Hendrix, ouvindo os caras dos anos 1970 que faziam a música ser até mais importante do que a letra; o pessoal do Woodstock viajava com aquela música toda de improviso. Sentia falta dessa coisa também. Acho que tem que ter um equilíbrio maior. Não esquecer da poesia, mas… O Chico Buarque faz isso na música dele. Ele faz uma poesia maravilhosa e a música também. E a música eletrônica acabou sendo importante para o rock. Hoje em dia, vejo novas bandas de rock aparecendo e resgatando a musicalidade. Acho que pode ser uma influência da eletrônica.

A história se inverteu, então…
Sim, se inverteu. Quem tem 22, 23 anos hoje está fazendo rock usando elementos psicodélicos. São pessoas que freqüentaram raves, ouviram toda aquela coisa louca e foram influenciadas. É isso que gera o rock atual, que é mais trabalhado, que tem bons instrumentistas e não caras que querem somente mostrar que são bons. São músicos que trabalham mesmo na banda, criam timbres. É uma música para fechar os olhos, ouvir e sentir.

O Benzina não requer tanta produção quanto um grande show. Que tipo de equipamento utiliza?
Tenho duas máquinas seqüenciadoras com vários timbres melódicos e percussivos. Criei minhas músicas nessas máquinas. Uso um mixer e é como se cada máquina fosse uma pick up. A música que tenho na máquina um vou mixar com a da máquina dois. Assim faço uma apresentação de uma hora e meia sem parar uma música sequer. Uso a guitarra em vários pontos da música, algum vocal, uns samplers de voz… Não tem tanta produção, mas é musicalmente tão rico, ou até mais rico do que um show. É no underground que os caras estão levando discos que você nunca ouviu falar, é onde os artistas novos estão surgindo, os movimentos e as novas batidas… Gosto muito de fazer essa ponte para a minha música não ficar parada num estereótipo, criar um estilo e parar nele. Esse disco foi produzido pelo iugoslavo Suba e contou com remixes dos DJ’s Mau-Mau e Renato Lopes.

O CD Acústico foi uma proposta interessante para o Ira! pelo estilo da banda?
Sim, acho que o Acústico foi muito bom para o Ira! porque já temos 23 anos de carreira. Fizemos vários discos nesse tempo todo, tivemos altos e baixos na relação com a mídia, momentos de esquecimentos. A banda nunca parou, mas evoluiu. Houve momentos em que ficamos um pouco mais esquecidos, fizemos menos shows… Nos últimos seis anos crescemos novamemente. Acho que é importante para uma banda com 23 anos ter um disco desse porte, com esse status. É um disco respeitado na mídia, o público aceita muito bem. Os brasileiros gostam de cantar, de ouvir um violão privilegiando a poesia. E é uma justiça com o Ira!. Valeu super a pena o CD e a forma com que foi feito o DVD, as imagens estão lindas, os depoimentos bastante interessantes. Os convidados do disco foram Os Paralamas do Sucesso, o Samuel do Skank, e a Pitty. Eles representam três gerações do rock, desde que o Ira! começou até os dias de hoje: 1980, 1990 e 2000. Gravar um disco só com violão e com os grandes sucessos é uma fórmula certa. Tentamos quebrar um pouco isso, colocamos algumas músicas inéditas e músicas que nunca foram de trabalho da banda para quebrar um pouco isso, afinal é o Ira!, não é uma banda que vai pelos caminhos mais habituais. A gente sempre procurou fazer algo mais alternativo e não perdemos esse costume. Sempre foi um sonho do Ira! tocar em um lugar como o Theatro Municipal. E a chance apareceu em Curitiba. Tocamos no Teatro Guaíra, onde se apresentam as óperas, as grandes orquestras… Certamente, com o formato elétrico, os caras não iam deixar a gente passar nem na porta do teatro! A gente tocou lá para mais de duas mil pessoas. Foi maravilhoso!

Além de morar na Vila Madalena e de já ter tocado em algumas casas noturnas do bairro, o que mais te atrai aqui?
Sou meio itinerante. Só aqui em São Paulo já morei em vários lugares. Nasci na Liberdade, morei no Paraíso, na Vila Mariana, na Vila Gumercindo, em Pinheiros, no Butantã, no centro… Morei um tempo em Recife… E estou na Vila Madalena há uns seis anos. Mas, antes de morar, freqüentava muito a noite, os bares e restaurantes da Vila. Uma das características do bairro de que gosto é poder circular pelas ruas a pé… Se as pessoas me reconhecem, deixam caminhar sossegado! Também gosto dos restaurantes. Estou virando fã de comida boa porque estou aprendendo a cozinhar; quando dá tempo faço curso de gastronomia. então, conheço todos os restaurantes japoneses, os mexicanos, italianos, os bares… Há uma onda de bares com o estilo do Rio de Janeiro, como o Posto 6, São Cristóvão, Pero Vaz… Sem falar nas lojas de roupas super boas, que têm a característica do dono ser o estilista. Mesmo o Sacolão da Vila é super agradável, privilegiado. Durante o dia, o bairro é como uma cidade do interior. Já foi mais, mas ainda dá para conhecer os vizinhos, as pessoas te cumprimentam. E à noite vira um caos. Tem trânsito, muita bagunça… Tem um pouco dessa coisa urbana, mas com características interioranas. Isso para mim é importante principalmente porque tenho quatro filhos, dois moram comigo. É importante ter um lugar para passear com carrinho de bebê, poder levar o cachorro para dar umas voltas. As pessoas convivem melhor umas com as outras.

Quais os projetos para este ano, além dos shows com o Ira!?
Do Benzina vai sair um remix com várias músicas do disco que lancei há um ano. Também está sendo preparado um vídeoclip da minha apresentação no Skol Beats. Como esse ano será muito intenso para o Ira!, estamos com vários shows marcados, quero deixar a chama do Benzina acesa com algumas apresentações, para no ano que vem poder fazer um novo disco. Quero ver se dar para levar esses dois projetos sem muito trauma.

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