Uma vida que vale por muitas

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Conversar com João Gilberto Baldo é ter uma aula de otimismo e coragem. Fisioterapeuta formado em 1991, em Ribeirão Preto, João tem uma doença que o deixou com dificuldades de fala e de movimento. Ao mesmo tempo em que isso aconteceu, sua sensibilidade e inteligência emocional foram aumentando. O que para muitos poderia ter sido uma sentença de morte, para ele foi o recomeço de uma vida mais rica. Hoje, ele tem seu próprio negócio – a BalMed, uma loja de produtos médicos, aberta há três meses –, onde trabalha todos os dias e conversa com cada cliente, sempre levando uma palavra de incentivo. Em tempos de corrupção e desonestidade tão grande por parte das “autoridades”, João é um exemplo de dignidade no trabalho e na profissão que escolheu.
Fale um pouco da sua vida antes da doença.
Nasci em Ribeirão Preto e tenho 42 anos. Me formei em Fisioterapia. Adoro a profissão pelo contato que tem com tantas pessoas diferentes. Trabalhei 15 anos com geriatria e trabalhar com idosos é uma fonte inesgotável de prazer, porque é uma troca: você está dando seu trabalho e ele está te dando sua experiência de vida. Já na faculdade comecei a trabalhar com idosos. É um trabalho difícil porque você é meio estivador, bem braçal, de força. Fora isso, tem que ter uma outra força: você trabalha com pessoas que estão passando por dificuldades físicas. Mas isso também é bonito, porque daí você tira coisas boas, aprende muito. E isso faz você ficar preparado para outras coisas. Não sei qual foi exatamente o caminho, mas sei que alguma coisa aconteceu comigo, de forma a me fortalecer.
Foi aí que começou?
Depois de uns sete ou oito anos de formado e trabalhando, eu descobri que tinha uma doença metabólica, provavelmente hereditária, degenerativa, do sistema nervoso central. Ainda não tenho um diagnóstico fechado – ela não tem um nome “oficial” –, e a gente investiga bastante. Eu sou paciente nas duas principais escolas de medicina, que é Escola Paulista de Medicina e a Faculdade de Medicina da USP, e nenhuma das duas chegou à conclusão do que eu tenho.
Mas o que você sentiu?
Fui andar a cavalo e na hora em que montei nele, me senti totalmente duro e sem equilíbrio: braços e pernas estendidos, tronco inteiro duro. Aí um rapaz me tirou do cavalo, porque eu achei que fosse cair. Senti que tinha algo errado. A voz também… Só que, quando você associa uma coisa à outra, aí você assusta. Quando desconfiei que tinha alguma coisa errada e fui procurar um médico, eu estava vendo esses erros no meu dia-a-dia: erros de percepção, de fala, de equilíbrio. Mas eu nunca pensei ‘meu Deus, comigo não’, porque a maioria das pessoas, quando tem algum problema já pergunta ‘meu deus, por que comigo?’ Eu não pensei assim. Hoje sei que se veio para mim é porque eu tenho força para segurar essa, senão não viria. Sem dúvida que o trabalho com idosos me ajudou a entender muita coisa e a aceitar também.
Você notou alguma coisa com sua voz?
Sim, mas não tinha valorizado. Comecei a investigar com a ajuda dos médicos. Em alguns exames, como ressonância, não dava uma discrepância muito grande, então pediram um exame de DNA, que eu fui fazer com a Dra. Mayana Zatz, na USP. Quando entrei, era um prédio bem antigo, com um corredor escuro, chão de cerâmica e parede de tijolo à vista, muito escuro, e lá no fundo uma porta. Essa cena é muito nítida para mim e foi um divisor de águas. Conforme eu fui chegando, o quadro era o pior que eu podia ver. Havia muitas pessoas, desesperadas, com filhos, crianças, pais que não sabiam o que ia ser do filho, com as mais diversas deformidades. Nesse momento, decidi que eu não ia investigar nada. Fiquei uns quatro anos sem ir ao médico por conta disso. Pensei: é comigo a coisa, é degenerativa, isto é, com o tempo ela vai me aumentando o déficit de tudo, então para que iria ouvir isso?
Na verdade você já tinha um ‘diagnóstico’ que era não ter um diagnóstico…
Eles estavam procurando mais alguma coisa. Nessa hora eu resolvi que não iria viver em função da doença. Porque se eu ficasse pensando só na doença eu não ia viver, não ia trabalhar, viajar, passear, enfim viver. Fiquei de 1998 até 2002 sem ir ao médico. Nesses quatro anos que não investiguei nada, resolvi trabalhar. Ralei muito, das 7 da manhã às 10 da noite, foi uma fase muito boa, cheia de clientes, sempre idosos. Foi aí que eu me dei bem, com o trabalho a gente se dá bem. Muita gente fala que quem trabalha não fica rico, mas depende o que é riqueza, o que cada um quer, da ambição de cada um. O que eu queria de riqueza o trabalho dava. Só que em 2002 eu voltei a investigar a doença porque verifiquei que algumas coisas estavam se acelerando.
O que aconteceu nesses quatro anos?
Parei de correr, comecei a ter dificuldades para subir e descer escadas, comecei a ter mais quedas. Em 2002 voltei a me tratar um pouco mais. Mas esse não é meu objetivo principal. Quando se tem uma luz no fim do túnel, tem que se tratar mesmo, mas eu tenho duas opções: ou eu fico pensando na minha doença ou eu penso em viver, trabalhar. Eu optei por viver. Descobriu-se que tenho hipoglicemia noturna e comecei a tomar amido de milho à noite para não ter problemas. Também tomo uns aminoácidos, para ter mais energia, e estou segurando com isso. Me sinto renovado quando tomo os medicamentos. Sabe quando você tem um brinquedo e põe pilha nova? Quando não tomo uma dessas coisas, eu fico meio down, caído…
Mas só fisicamente, porque mentalmente você está sempre elétrico…
Graças a Deus. Mas a gente tem que canalizar essas energias para coisas produtivas. E o tratamento está segurando minha onda, não estou sentindo mais a doença evoluir como eu via. Está estacionada.
E sua família?
É uma grande preocupação. Eu sou solteiro e não queria falar para minhas irmãs, meus pais o que eu tinha. Não queria que eles se sentissem culpados. Em doenças hereditárias os pais sempre se sentem assim. E é besteira deles. Até que resolvi contar. Minha mãe começou a achar que ela era culpada. Mas não tinha a ver. A família me dá o maior apoio. Com o passar do tempo a gente vai mudando a cabeça e estou numa fase ótima.
Você parou de trabalhar?
Como fisioterapeuta sim, porque as limitações de fala e equilíbrio interferem no meu trabalho. Ainda tenho competência para fazer, discernimento para saber o que eu posso e o que eu não posso. Eu trabalho porque preciso, uma coisa é você estar doente e não ter que correr atrás de recursos, outra é estar doente e ter que se manter. É muito mais fácil quando você não precisa prover. Mas eu fui atrás, é muito bom acordar e ter o que fazer. E uma forma de permanecer em contato com esse tipo de público foi abrir a loja. E eu não recorri à aposentaria por invalidez. Às vezes a pessoa perde um dedo e já recorre. É muita injustiça para quem precisa de fato receber esse dinheiro e não recebe porque o sistema fica saturado. Eu acho que ainda tenho força de trabalho. Tudo que eu ganhei naqueles anos que eu trabalhei muito estão investidos na loja. Inclusive eu tinha duas opções de novo: ou ficava com o dinheiro e não fazia mais nada; vivia de juros, ou abria um negócio. No começo foi difícil: aluguei o imóvel em setembro, porque demorei seis meses para regulamentar a papelada. Aí eu não conseguia comprar nada. Fiquei só gastando. Agora o movimento está crescendo dia-a-dia. Vendo de fralda geriátrica, todo material de home care, de ortopedia, até produtos para estética, aquelas malhas para drenagem linfática. E material para tatuagem.
E como está sendo a experiência?
As pessoas que vêm comprar produtos para home care vêm aflitas. Uma coisa é médico, fisioterapeuta ou enfermeiro, preparados para lidar com doença. Mas muitas vezes a doença cai na família e ela não sabe por onde começar. Então eles chegam aqui desesperados. Uma coisa que sempre peço nas minhas orações é que eles saiam daqui mais leves do que quando entraram. Eles vêm procurar uma coisa, mas acabam levando uma outra, agregada. Eu converso com a maioria das pessoas que vêm aqui. A gente desenvolve uma sensibilidade meio diferente quando tem uma doença, trabalha na área de saúde e está em contato com as pessoas. Muitas vezes você vê no semblante pesado da pessoa o quanto ela está sofrendo. Aí eu começo a bater papo. Existe quem não queira falar, só entra, compra o produto e vai embora, mas eu costumo orientar o que é melhor para dar conforto para os pacientes. Foi por isso que me mantive no ramo.
Você é religioso?
Sou católico de nascimento, vou à igreja. Gostaria de ser mais atuante. Mas o importante é ter fé, não importa a religião. Aprendi com meu pai, que está com 84 anos e tem Mal de Parkinson, que devemos fazer as coisas sem intenção de prejudicar ninguém. Essa é minha base: não roubo o governo, não sonego imposto, não jogo lixo na calçada do vizinho, tento sempre fazer o bem, não quero manchar minha vida. Isso dá uma paz muito grande, você se sente mais calmo.

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