Sombra de um mago tupiniquim

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Pedro Costa

Ao longo dos tempos os profetas atravessam a humanidade com sua eterna estampa barbuda, túnica e sandálias surradas pelas suas andanças, inspirados entre transes e divindades e transmitindo suas mensagens. Não apenas predizendo o futuro, o que não constitui mais do que um elemento acessório de sua missão. Ora perambulando, ora estático, como as grandes estátuas.
Entre os primeiros profetas encontravam-se Neferrhu e Ipuwer no Egito antigo, há 2000 a.C. Eram os profetas áulicos. Depois os gregos de Delfos e os profetas hebreus dos grandes templos. Samuel, Isaías, Jeremias, Zacarias e tanto “ias” a fora, até a anunciação do novo Messias. Assim o último profeta, nos conta a história, foi João Batista, o padrinho de Cristo.
Adoro voar. E escrever é sobrevoar, é um passeio pelo tempo nas asas da imaginação, num aeroplano da história. Assim pouso onde gosto, e na época que desejo. Deixo para trás as colinas, as tribunas, as arcadas, o Monte das Oliveiras e aterrizo na Vila Madalena. Aqui eu encontro os nossos profetas tupiniquins. Os mais velhos vão lembrar do “Seo” Taquara, sujeito alto, claro, ficava sempre na esquina da Aspicuelta com a Fradique. Quando a moçada, entre eles os moradores da época, Beto e Vadão, provocavam o “Seo” Taquara, ele prontamente subia no seu inseparável caixote e no centro das ruas começava o seu discurso xingando o então presidente Jânio Quadros e por aí afora.
Sempre alheios a seu tempo, os profetas foram aos poucos se “mendigando”, sendo expulsos ou trancafiados em manicômios, ou acolhidos pela comunidade e integrados no cotidiano do bairro. Um que não dá para esquecer é o “Sete Paletó”. Perambulava pela Vila, barbudo, ao invés de túnica usava os paletós que ganhava e vestia todos eles, de uma vez. Dizia que não teria tempo de usá-los até o fim, então vestia-os todos. Podia estar a temperatura que fosse. Ainda pendurava sobre o corpo, panelas, pinico, caneca, frigideira, um monte de cacareco, lata de goiabada. Determinada hora, parava e fazia dali mesmo sua cozinha. Dizia que sua casa não faltava paredes, que era apenas transparentes, e itinerantes.
Outra figura era a Tika. Vivia pedindo “um cruzeirinho”. Caso a pessoa negasse, levantava a saia despudoradamente. Atrás desta pessoa grotesca, havia uma mulher que sustentava uma família grande, na maloca do Mangue, no final da rua Fidalga, outra ironia.
Já passa uma década, que há sentado na pequena ilha, logo na entrada da Vila Madalena, na Pedroso de Morais, um escriba, não, um profeta ou um mendigo, também não. É Raimundo Arruda Sobrinho, um “mensageiro do tempo”, assim prefere ser definido. Seus escritos são ofertados a quem por ele passa e pede. Ciclistas coloridos, moçoilas dentro dos seus carrinhos, trabalhadores que passam por ali a caminho do ponto de ônibus, estudantes da USP, domésticas do Alto de Pinheiros. Muita gente que pede suas mensagens. São sempre curtas o suficiente para caber num pedaço de papel previamente recortado, e o mais interessante é que todos são seguidos de uma numeração, seguido pelo último que entregou, com data e assinados: “O condicionado”.
“Seo” Raimundo está na Pedroso assim como Dalai Lama está para o Oriente, sentado. Escreve o tempo todo, mesmo não havendo ninguém pedindo mensagens. Escreve sem parar, parece não se incomodar com o trânsito ou com alguém que fica olhando-o pela primeira vez. “Todos vocês são condicionados, inclusive eu”, disse-me sem piscar. Os olhos fitados em um ponto qualquer. Sua fala é arcaica, brusca, seca parece estar com raiva ou nojo de nós. “Eu sou o inconsciente de vocês. Em que nos tornamos além de peças de um tabuleiro fazendo o jogo de perder ou ganhar”. “Seo” Raimundo é a crítica do capital. “Para quê ter se nem ao menos conseguimos ser”. Seu olhar investiga, instiga, questiona entre uma frase e outra.
Antes de estar ali, morando e vivendo, era jardineiro. Parou depois que ficou paraplégico. “Estou aqui desde 27 de Outubro de 1993 e nasci em 8 de Agosto de 1934”. Indagado por que alí no meio da avenida, respondeu: “Uma via vai, outra vem, assim fico no meio, entre a teoria e prática, vivo a diferença”. “Seo” Raimundo tem muita coisa para contar que não me disse. Prefere falar do futuro, como todo profeta que se preza. Não usa túnica, apenas uma capa de retalhos de saco de lixo, um chapéu quase cone também de saco plástico, deixando no chão a sombra de um mago.
Enquanto o sol aos poucos se punha, o trânsito dava a largada com o sinal verde, e um bando de pardais assustados revoavam no mesmo fluxo dos carros. Era o tempo de novo passando sem parar, dando-me um toque de recolher e lá ficou o velho profeta, impune ao tempo, vendo os séculos passando sob seus pés.

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