Mestre sem toga

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Pedro Costa

Das que havia levado, aquela foi sem dúvida, a que me chamou mais atenção. Não tremia, nem se mostrava nervosa como era praxe. Sentada no banco de trás, com as pernas indecisas cobertas pelos panos entre cetim, véu e grinalda, olhava-me fixo no espelho retrovisor.
O galaxie velho batia os pára-lamas e meu fígado dava pontadas. A missão era simples. Transportar noivas. Havia comprado, com a indenização do meu último emprego, esse luxuoso velho automóvel. Baratinho. Quando coroinha aprendi a gostar de sacristãos. Figuras admiráveis, mornas, sutis e prestativas. Nesta aquisição, reativei minhas amizades. Passava pelas igrejas e oferecia meus serviços. Tendo em mãos as listas e o endereço dos nubentes bastava consultá-los sobre o harmonioso transporte oferecido. Lá estava junto com os noivos no banco traseiro o legítimo malte escocês, Natu Nóbilis. No porta-malas, arroz em saquinhos, latas para serem amarradas no carro, tintas de farinha, etc.
Mas, aquela noiva…
Muitas vezes fui, na mais profunda sinceridade, o puxa-choro dos casórios. Me emociono com o órgão, com as flores, o tapete vermelho, a despedida dos pais, o beijo de chapéus das madrinhas, que lindo!!! Lembra mesmo a eternidade, juro.
Buscar a noiva em casa, levar o pai, chegar à igreja, abrir a porta,enfeitar o carro, esperar a saída, levar o casal até o hotel… Ah! Quantas vezes casei junto!
Numa destas viagens, levei um casal coreano, numa igreja da Liberdade. Após o evento, pagaram. Fui embora. Havia na São João, o Denise bar, ao lado do cine Comodoro, onde ia comer sempre a minha feijoada na madrugada. Este bar era interessante. A feijoada das quartas e sábados era feita nas noites de terças e sextas-feiras, depois da meia-noite até de manhã era servida, havia um público fiel e conhecido.
Na saída, a noite alaranjada abria um novo dia. Notei no banco traseiro do carro um saquinho que embrulhava um kimono enrolado numa faixa preta. Fiquei alguns dias tentando localizá-los em vão. Algum dia seria útil. E foi.
E aquela noiva… Resolveu passar a lua de mel comigo. Seria talvez o fim do “chofer de noivas”. Das que eu havia levado aquela foi sem dúvida a que me chamou mais atenção. O retrovisor do carro tornou-se nosso cúmplice, nas trocas de olhares “calientes”, embebidos de Natu Nóbilis. Mudamos o itinerário. Descemos a Anchieta, rumo ao “guru do já”. Noivo de última hora, vendi o Galaxie. Eu e a raptada estouramos em pouco tempo a grana do meu ganha pão. E como diz o ditado, “amor de praia não sobe a serra”. E da mesma maneira que fugiu do casamento, sumiu de mim.
Sem noiva, sem carro. Teria que voltar para a Vila e dar um jeito de quitar a conta da pensão do amor. Lembrei-me do tal kimono. Cheguei na rua Turi. Passei numa banca de jornal, comprei uma revistinha do Bruce Lee. Parei na Padaria MC da Mourato Coelho para pensar com uma cerveja. Acendi um cigarro e entre a neblina da fumaça, pensava como pode um mestre de “TAE KWON DO” exercer suas atividades sem ter uma academia? Tantos anos treinando, treinando. Onde estão meus cafanhotos? Pensava com dó de mim.
Coloquei o meu cérebro oriental para funcionar. Mais um cerveja fiz uma crítica ao português, o querido Álvaro, sobre as padarias ocidentais que nunca vendiam saquê. Por quê??? Antes que eu arrebentasse aquele templo inimigo, resolvi ir embora. Num simples golpe, o bigode do português estaria em pedacinhos. Fui para o ponto, peguei um ônibus para o centro. A revistinha era bem didática, com ilustração das posições, ataque e defesa, seqüência de golpes, etc.
Para onde eu estava indo, não sabia. Kung Fu também nunca soube. ÊPA! Desço aqui. Achei, disse para mim. Era ali, um casarão velho onde tempos atrás havia lecionado. Era o colégio Frederico Ozanan na rua Augusta. Nessa época andava dando um curso mambembe de criatividade, misturando culinária com redação… Os alunos não aprendiam muito, mas se divertiam bastante, eu mais ainda. Nunca gostei de carteira assinada. Era um curso livre de dois meses, que oferecia em escolas e empresas. Formava-se um grupo, e lá ia eu. Ah! Meus blefes…Ainda era uma escola. Entrei. O bedel me reconheceu. Estranho foi seu acesso de riso assim que me viu. Mal sabia de quem estava rindo. Mestre Pedro, faixa preta 5º Dan, sexto grau, quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas de Seul. Bom, optei pela humildade dos grandes mestres das artes marciais. Passei batido. Cheguei na sala do diretor.
– Posso entrar?
– Ora, quem vejo! Ainda bem, veio retirar seu material didático né?
– Não eu…
– Muito bem. Aquelas tranqueiras, banheiras, panelas, manequim sem cabeça, bicicleta sem roda, todo esse material “sensorial”, ta lá numa sala ocupando espaço. Não sei até hoje como concordei com aquela loucura…
– Providenciarei a retirada. Porém o que me trouxe aqui não foi isso. Sabe o que é, Seu Diretor, nunca mencionei, mas sou mestre de Tae Kown Do, 5º Dan… E como é de meu conhecimento, aqui nesta escola, carece de uma atividade esportiva maior.
Meu bico estava doce, falei o suficiente. Tinha entrado na minha. Acho que desconfiou um pouco, quando notou meu físico, que estava mais para manequim da Brahma do que um atleta. Mas,era uma graninha a mais para ele. Topou o “metza a metza”.
– Muito bem, mestre. Aos sábados, a sala sete está vazia pela manhã. Divulgarei na escola, pode começar na próxima semana.
A sorte de novo andava comigo. Pronto, só restava mais uma olhadela na revistinha e tentar fazer aqueles golpes. Tinha uma semana pela frente. Ai, que martírio! Suava cerveja, tossia cigarro. As batatas das pernas pediam arrego. Aquelas posições indecorosas. Sempre ruim de fôlego. Quase desisti. Fui surpreendido pelo espelho do quarto. Estava bonito, perfeito. Aquele kimono, a faixa, o emblema no peito e a bandeirinha da Coréia nas costas com as letras de couro escrito Tae Kwon Do. Aquilo me animou, continuei.
Passada a semana, fui para lá. Para minha surpresa havia vinte e seis escritos. A maioria molecada. Muito bem. Mandei a moçada se trocar. Eu já estava na sala. O grande mestre entrava em ação. A primeira parte da aula era de exercícios. Abdominais, correr em círculos. Demonstrava primeiro e a tropa fazia o resto. Junto seria impossível. Não encontraria resistência para tal. Intervalo. Todos sentados em volta. O mestre desfilando com sua imponente faixa preta. Fazia um pequeno discurso. “O melhor ataque é uma boa defesa, assim: IIAAAAAÀ!”. E voltava a falar conforme a revistinha, naquela linguagem besta.
Todos enfileirados. Mostrava uma seqüência e ficavam fazendo. Eu dando uma rígida vistoria. “Levante o queixo, molenga”, “força bastardo!”…
Tudo ia bem. Desconfiavam um pouco, depois das aulas. Tinha um boteco ao lado. Depois daquela suadeira, nada melhor do que uma cervejinha gelada, com um quebra gelo. Alguns também iam para lá tomarem suas cocas, sodinhas e me olhavam um pouco de esgueio. Também, pudera, justo aos sábados de manhã eram as aulas. Sem contar os fogos das sextas.
Passados dois meses, senti os coitados enjoados, Sempre a mesma coisa a revistinha não ia mais a diante. Passei alguns para a faixa amarela. E aí? Comecei a improvisar. Até que inventei alguns golpes interessantes. Assim: IIIIAAAAÀ!! Entenderam? Repitam. Repitam…
Estava indo bem. Ate que surge, num belo dia, o primo de um idiota. Quis levar o priminho de um metro e noventa de altura por um e meio de largura, faixa marrom de Karatê, para assistir a minha aula. Até aí tudo bem. Após ser apresentado, apertei a mão do brutamonte. Parecia aço, quase moeu a minha mão. Disfarcei a dor.
– Haraaã. Sente lá também, garotinho. Vamos começar!
– Sabe o que é mestre, trouxe meu primo aqui, por que acho interessante, de repente, uma demonstração entre vocês. São artes marciais diferentes, e um confronto amistoso seria…
– Não, não. Não invente moda. Agradeço a visita dele, pode assistir a aula, mas nada de confronto.
Peguei no braço da fera, levando sutilmente para sentar-se. Era um verdadeiro muro. Nisso, a moçada toda começou a pedir:
– Mostra, mostra, mostra…!
Não tive outra alternativa. A insistência agora era geral. Pensei em São Jorge. Todos em volta. Eu e o mestiço de gorila no centro. Fizemos o cordial cumprimento e em seguida a posição de ataque. Ele olhando, pronto para vir. Eu suando frio. Pensei: se ficar esperando vou dançar. É agora! Pulei meio desengonçado com o pé direito nele, seguido de um grito espalhafatoso. Sumiu rápido da frente e já estava atrás de mim, dando tanta porrada que vinha sei lá de onde.
Foi uma palhaçada. Nunca tinha apanhado tanto na vida. Uma hora, me vi encurralado no canto da sala, com uma das mãos tapando a cara, a outra o saco. Era o fim. Quando percebi que ainda respirava, todos haviam ido embora. Até hoje meu nariz é torto. Ficou só um garoto, meio mongol, passando um pano úmido na minha testa.
– Pronto, mestre. Já acabou. Acorde. Tô prontinho pra aula,vamo lá?
– Que vamo lá o quê, seu babão!!! SAI DAÍ !
Na calçada, com a mão no bolso, latejavam os hematomas. Olhei para cima e para baixo da rua. Os carros passavam indiferentes. Tinha no bolso uma ficha telefônica. Talvez aquela noiva ainda estivesse solteira.

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