Amanhecia na Vila. Não havia ainda o metrô. A sua população era pequena e as ruas desertas. Não era vista como um dos bairros mais badalados da Paulicéia, muito menos havia trânsito na madrugada.
Mas nem tudo estava quieto. As janelas, cujos quartos beiravam as calçadas, logo acendiam suas lâmpadas. Os moradores saíam na rua para ver o que era aquele “tiroteio” seguido de gritos: Vamos, empurra! Agora. Pega cachorro! Vai danado! E pá pá pá pá… Estalavam as velas daquilo que não se via, saindo faíscas, soltando rajadas pelo escapamento. Ameaçava pegar e pegava. Depois morria. Era uma vespa enorme? Um alienígena ou um furacão ambulante? Não. Era pior. Era o Trovão Azul. Por onde passava, arrastava a todos. Surgia de repente do nada, com uma velocidade incrível e totalmente descontrolada, rasgava nossas ruas e subia nas guias. Na Girassol, arrancava suas pétalas ao passar, na Harmonia acabava o sossego, na Mourato Coelho soltava os cachorros e na Natingui, ali, morria de novo. No cemitério São Paulo descia a Luiz Murat, renascendo como uma Fênix das cinzas. Era o fusca do Risada.
A cada boteco paravam. Seu motor à gasolina, adaptado na marra para o álcool, também tomava umas doses que o Risada e seus passageiros colocavam no tanque sempre vazio: Toma Trovão Azul! E saíam pela Vila, enfumaçando, estalando e rindo, inclusive o velho Fusca.
Recordo quando o Risada comprou o Trovão. Veio de uma dívida, de uma casinha que construiu como pedreiro na Vila Beatriz. Aquele sorriso sem dentes estava mais feliz do que nunca com a aquisição. Quem quiser rever o Risada, ele está sempre na marcenaria “O Gabarito”, de seu filho, na rua Lira ou no bar do Gérson na Natingui.
Não tinha carteira de habilitação, muito menos sabia como dirigir o possante Trovão Azul. Sem casa fixa, o Risada começou a dormir no seu carro. Vivia parado ali na rua Colonização durante o dia. Não demorou muito para achar um motorista para ele. Chamou então seu amigo, o falecido Manguaça que de cara aceitou o convite, que não lembrou de perguntar se o convidado sabia ou não dirigir. E nunca soube. Apenas tinha uma noção de direção, segundo o Risada, sabia ir para o Norte e Sul da cidade.
Já tarde da noite foram novamente comer a almejada costela do Sujinho da Consolação. Zé Mauro era outro que sempre estava junto com os dois no Trovão Azul. De lá saíram ainda mais de fogo do que entraram.
A placa presa com Durepox, os pára-lamas amarrados com arame, os pára-choques com uma corda, o escapamento sem o silencioso soltava faíscas com soluços de fumaça, indo de uma faixa para outra, morre o Trovão na subida. Uma viatura se aproxima. Pergunta para o Manguaça se queria uma ajuda para empurrá-lo de lá. Quando descem todos os tripulantes um dos guardas disse: Opa, pera aí! Ta todo mundo de fogo! A carteira, Manguaça não tinha. Documentos do carro então, nem pensar. Preso, você e o carro!, disse o guarda. ‘Carma’ aí, disse o Risada. O ‘tomóvel’ é meu, moro nele e vou com ele também.
Há momentos que alguns carros especiais, por alguma razão ganham nome e espírito. Assim partira o Trovão Azul, com sua fúria indomável.
Zé Mauro, o amigo de Risada, com as multas que pagou recuperou o Fusca. Nessa época, Zé Mauro que também tomava todas, já estava vendo bichos direto. Até o dia que o Trovão Azul, quieto lá na sua garagem, de repente tornou-se um assustador dinossauro Rex, abriu sua boca de porta-malas querendo engolir o Zé Mauro. O susto que levou fez com que vendesse o carro a qualquer preço.
Foi quando a Vila pôde, enfim, dormir tranqüila. Aquele monstro faisquento e assustador foi assombrar por aí outros bairros em noites amenas, longe de tempestades. Assim ressurgirá o Trovão Azul. E mais uma lágrima de saudades rolará do rosto do grande Risada.