Beber ou não: eis a questão!

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m vigor desde 19 de junho, a Lei Seca, como vem sendo chamada a Lei 11.705, modifica o Código de Trânsito Brasileiro, punindo os motoristas que estiverem com uma quantidade de bebida alcoólica acima de 0,1 mililitro. Isso está causando uma revolução nos hábitos e costumes dos paulistanos, principalmente nos bares e restaurantes da Vila Madalena. Beber e dirigir pode ser uma combinação complicada.
Lei Seca mesmo aconteceu nos Estados Unidos, de 1920 até 1933, onde foi proibido o comércio, a fabricação, a importação e o transporte de bebida alcoólica. O objetivo era acabar com a pobreza e a violência atribuídas à bebida. Porém, isso gerou mais corrupção e não contribuiu para melhorar a sociedade. A lei então foi revogada.
Para que você mesmo forme sua opinião, fomos procurar duas pessoas de renome para falar sobre essa lei: o advogado Percival Maricato e o jornalista Gilberto Dimenstein. Eles têm opiniões contundentes sobre o tema, sobre o modo como ela está sendo imposta à população. Acompanhe aqui as entrevistas feitas separadamente com cada um deles.

Percival Maricato

Morador há 35 anos da Vila, lançou vários bares (Danton, Avenida, Continental, Blen-Blen). Freqüentador do Canto Madalena, advogado, membro de várias entidades que representam bares e restaurantes de São Paulo (Abrasel – Associação Brasileira de Bares e Restaurantes – SP, Sindrestaurantes – Sindicato dos Bares e Restaurantes)

Você é contra a lei seca?
Sim, da forma como ela foi colocada. O que existe era o Código de Trânsito brasileiro, que dizia que as pessoas que dirigissem sob a influência do álcool deveriam ser punidas. E a punição era gradativa, mais administrativa do que penal. Quando veio essa lei, que foi aprovada sem nenhuma discussão pública, diga-se de passagem, alterou a lei de forma estúpida, inadequada, autoritária, tanto do conteúdo como da forma e provocou essa celeuma toda. Eu posso dizer que ela é um estrupício tanto do ponto de vista social, como econômico, como jurídico, como cultural.

Então explique esses pontos.
O ponto de vista econômico: ela leva à quebradeira centenas de milhares de estabelecimentos do meu ramo, além das indústrias do vinho, da cerveja e do destilado, que passam a correr risco. Acaba com o turismo, a gastronomia, a vida noturna. É uma hecatombe. Também em relação aos empregos e ocupações: são dois milhões de empresários e sete, oito milhões de trabalhadores ligados a bares e restaurantes que estão correndo risco. Se você tira a bebida, coloca todo mundo no vermelho, fechando portas, demitindo pessoas.

E culturalmente?
Eu diria que as cidades são estressantes e os bares são a forma mais gostosa de descontração, mais acessível, mais democrática. E a bebida sempre esteve ligada à vida do homem. Antes de Cristo já existiam fórmulas de cerveja e vinho. Sempre foi uma coisa importante pra humanidade, ligado a deuses, nunca foi vista como um diabo, como agora. Então a lei arrebenta com a cultura de tomar um chopinho. Nas cidades só se transporta por veículos, porque não têm políticas públicas de transportes, o metrô pára, o táxi em São Paulo é caríssimo e, se tiver ônibus, você corre o risco de ser assaltado. Tem ainda os eventos socioculturais: casamento, batizado, churrasco, nascimento, aniversário, coquetel da empresa… Seria utopia achar que todo mundo agora vai andar de táxi.

E o ponto de vista jurídico?
Aqui então é uma coisa de louco, porque temos princípios de direito que são fundamentais. Por exemplo, o princípio da razoabilidade, que quer dizer que uma lei tem que ser razoável. O princípio da proporcionalidade, que quer dizer que o delito e sua pena têm que ser proporcionais. Essa lei fere tudo isso aí. Quer ver? O padre é um delinqüente se pegar o carro depois da missa; o sujeito que come um filé ao molho madeira, ou um bombom de licor, ou um creme de papaia com cassis, é tudo delinqüente. São 0,6 miligramas, dois chopes! Com direito à fiança na primeira vez e, na segunda, sem fiança, ele corre risco de pegar uma cadeia superior à do estelionatário, à do fraudador do erário público, metade de seqüestrador, de assaltante de banco. Por isso ela não é proporcional nas penalidades. Tem também aquele de não fazer prova contra si mesmo, que é de uma estupidez inacreditável. Desde a Santa Inquisição, que você era obrigado a se declarar culpado sob pena de queimar na fogueira, com um pequeno lapso no Brasil pela ditadura, que não existe isso. Na ditadura você ia pro pau-de-arara se não se declarasse culpado. Parece que agora eles querem a mesma coisa. Isso é um absurdo… E também dizer que o sujeito que se recusa a fazer isso é condenado como se alcoolizado estivesse, isso é condenação por presunção.

Por que essa lei foi aprovada sem consulta?
Esse pessoal que tem esse conceito de disciplinar a vida dos outros, eles vivem na Câmara e são poderosos e fizeram algo que ninguém percebeu. A Abrasel foi pedir aos deputados que deixassem de punir os empresários que tinham restaurantes nas rodovias e punissem os infratores. Só que pensamos em algo como EUA, Inglaterra, Canadá, países rigorosos e sérios, onde a punição existe pra quem tem acima de 0,8 miligramas e começa punição administrativa, não essa palhaçada que fizeram aqui. Mas como eles perceberam que tinham a chance, acabou sendo aprovada essa estultice aí.

Será que com todo esse movimento eles vão revogar a lei?
Eu acho que não, mas tenho esperança que, pelas ações, a gente mostre essas barbaridades, com as reações que estamos tendo de jornalistas, filósofos, a maioria da população, acho que isso vai acontecer a médio prazo. A vida em sociedade tem certos ônus, não dá pra ser perfeito em tudo. O que se tem que fazer é identificar os infratores e puni-los, mas tornar 100 milhões de brasileiros delinqüentes…

Gilberto Dimenstein

Jornalista, colunista e membro do conselho editorial da Folha de S. Paulo, comentarista de rádio e TV e criador da ONG Cidade Escola Aprendiz.

Você é contra a lei seca?
Em essência, apóio a dureza contra os irresponsáveis do trânsito. Não se está proibindo ninguém de beber, apenas se pede às pessoas que, se beberem, não dirijam. Não existe nenhuma proibição à bebida. O próprio apelido de “lei seca” já revela a impopularidade da medida em meio à opinião pública. Para muita gente, esse tipo de limitação ao prazer é tramado por um grupo de “chatos”, incapazes de apreciar os prazeres da vida. As determinações do governo são amenas, apesar de provocarem a ira de alguns. Assim como o cigarro, a maconha e a cocaína, o álcool oferece perigo à saúde mental e pode criar dependência. Nenhuma pessoa responsável deveria estimular seu consumo. Muito menos seu abuso. Há estudos que demonstram que considerável parcela dos crimes está associada ao consumo de álcool, fator responsável por atropelamentos, homicídios e violência doméstica, entre outros delitos.

Mas a publicidade estimula o consumo de bebidas.
Esse é mais um ingrediente para tentar entender porque é tão difícil brigar com a indústria da bebida, em especial a da cerveja, com suas campanhas publicitárias bilionárias, que habilmente associam álcool com jovialidade, felicidade e sensualidade. Usam-se ídolos populares, como Zeca Pagodinho e Ivete Sangalo, para vender essa ligação entre bebida e felicidade. É hora de avançar num esforço de também impedir a glamourização da bebida feita pela publicidade.

Você costuma beber?
Gosto de beber vinho, que tomado de forma responsável até faz bem pra saúde, aprecio aquela sensação de leveza que provoca uma dose a mais. Mas não apoiar essa lei é uma irresponsabilidade. Há tempos precisávamos de algo mais duro contra a matança no trânsito. A lei tem que ser rígida para todos. Não sou moralista.

As estatísticas provam que os acidentes diminuíram.
Foram necessários anos de denúncias e estatísticas até que as autoridades se convencessem da gravidade do problema e agissem com mais dureza. Fala-se há muito tempo sobre a relação entre álcool e violência. O efeito, de fato, não é da nova lei, pois já havia uma legislação que obviamente proibia a combinação de bebida com direção. O que pesou, em especial, foi a punição. A julgar pelo número de mortes associadas ao álcool, como mostra o trânsito de São Paulo, os “chatos” estão perdendo a batalha para a alegria sóbria de quem está faturando com a irresponsabilidade social.

Mas existe um movimento para mudar a lei.
Mexer abruptamente na lei neste momento pode significar que “liberou geral” e implicar em mortes. Temo que o excesso de rigor inviabilize a aplicação da lei. Também tenho dúvidas sobre a legalidade de exigir que alguém se submeta ao bafômetro.

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