O encanto do Vagabundo

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Não havia mais dúvidas, era um deles. Encontrei-o sem querer. As portas do trem do metrô da Vila Madalena se abriram como em qualquer outra estação, rápidas e saindo gente de todos os lados, como em um formigueiro que se pisa sem perceber. De repente a porta de um dos vagões fica interrompida. Ei-lo! Abre os braços deixando a passagem apenas a uma singela mulher de saltinhos compridos e vestido curto, toda lisonjeada diante do braço do sujeito que se desenrola como um tapete, aninha-se neste gentil cavalheiro e seguem juntos conversando pela rua Harmonia. Na Simpatia acontece um beijo. Lá estava o raro e amável vagabundo, figura oculta pelos cantos do mundo, sempre foi de duros e profundos estudos, muita psicologia no fino trato, com as pessoas que tanto enobrece e caracteriza o lero suave e seus gestos educados.
Gosto quando reconheço um por aí. Sinto–me ainda com esperança, mais que isto, um misto de prazer e fé na humanidade ao descobrir um verdadeiro vagabundo; livre, solto e solitário, aplicando com sutilezas e levezas, expondo sua arte rara de dobrar alguém ou abordar questões com seu jeito único e inconfundível de ser, sem demonstrar que dentro dele mora este ser vadio. É o inquilino metafísico que nunca pagou aluguel, mas está sempre em paz com o dono do imóvel, que por paixão, respeito ou admiração jamais irá despejá-lo deste endereço onde faz seu berço esplêndido e provisório.
Entre outros companheiros seus, também em extinção, está o boêmio. Porém, o verdadeiro malandro não se estraga nem sofre como ele. Bebe menos, fuma pouco e não se tortura como os demais humanos. Desconhece e despreza a dor, o rancor, o ódio, a inveja e a competição. O vagabundo é um ser sublime. “… Anda como quem anda assim de viés…”, já cantou Chico Buarque.
Desta fauna e flora urbana o vagabundo não pertence a um gueto, grupo ou tribo. Não tem foro privilegiado, não pertence ao Senado, nem ao Congresso, joga limpo e não tem eleitorado. Se fosse bicho seria lagartixa, pois é solitário como a tal. É um sujeito discreto, sensato e muito bom de papo como já disse. O que mais gosta de fazer é papear, jogar conversa certeira e pretensiosa sobre a presa perfumada, já envolta pelo lero macio, soprando palavras aquecendo as orelhas da vítima que começam a girar lentamente seus pescoços em direção a seus lábios de mel. O malandro é doce, sem ser pegajoso. Dobra aço no papo. Sabe entrar e sair. Não anda em bando e não faz mal a ninguém. Este gira-mundo tem ética e não diz que a tem. Se fosse planta não teria raiz profunda como as árvores, preferiria ser grama, de raízes soltas e rasteiras sobre a terra. O verdadeiro vagabundo trabalha, mas não se cansa, nem morre disso. É apaixonado pela vida, inspira e ensina (sem ser didático) a gente a viver. O vagabundo é Deleuzeano e nunca o leu.
Ao reconhecer um vagabundo autêntico, nunca diga: “Ahannm, achei!” Pode espantá-lo, cuidado! Está em extinção. É um ser sensível e muito tímido, embora não pareça. Foge dos holofotes como o diabo da cruz. Gosta de ser o centro, mas sem ser o palco. Ao ser reconhecido ou meramente confundido desaparece, por isso anda por um fio. É preciso cuidado. Carecemos de sua existência.
No dia seguinte, no mesmo horário, a mesma cortejada mulher, agora aflita e talvez já encantada, estava à espera de alguém que parecia nunca mais aparecer. Talvez tenha sido o desencanto. Talvez tenha ido galantear por outras estações.

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