Meu avô paterno era comerciante, assim como seu pai também. Homens sérios que sobre o balcão dias e noites debruçaram a responsabilidade de criar seus filhos que os ajudavam desde cedo e se fizeram doutores à luz de lamparinas, sobre o mesmo balcão que presenciou seus estudos. Como se as paralelas do comprido e estreito balcão fossem o inicio da estrada daquelas crianças que um dia, mais tarde, já adultos seguiriam seus próprios caminhos. Foi também sobre o balcão que ouviram a história de lutas de imigrantes que construíram esta cidade. Homens cujas gerações nos legaram a perspectiva e a coragem, deixaram seus nomes limpos e intactos para que os filhos seguissem este exemplo. Não o da mera tradição ou muito menos da hipocrisia da família tradicional, a qual não pertenciam.Eram por sua vez, filhos de operários. A tradição que me refiro é de trabalho, “Lavore, Capice?”. A herança era o trabalho, a honra, o caráter, a palavra, o fio de bigode, o olho no olho, o dente por dente. “O balcão exige respeito”, dizia meu avô. É feito da mesma madeira dos tablados das escolas e dos altares das igrejas. O balcão sempre foi o elo de maior cumplicidade e sociabilidade entre os cidadãos de uma metrópole.
Daí, o preconceito de achar que todo dono de bar é um adepto da vadiagem, do caos ou da perversão, há uma grande distância e uma imensa ignorância.
Vai-se aí hoje, um tempo curioso em que vivemos. Esta Lei Seca parece ter vindo de um tempo mais remoto ainda. O da Inquisição. Onde os chamados bruxos, tinham a opção de dizerem se realmente eram bruxos e com esta afirmação evitariam morrer queimados vivos na fogueira e seriam apenas enforcados. Assim é o tal bafômetro. Além de exigir que o indivíduo produza provas contra si mesmo, vai preso, leva uma multa e perde a carteira de motorista, até aquele que bebeu um chope ou uma taça de vinho no almoço, ou mesmo uma senhora que comeu dois bombons de licor também vai em cana. O padre da paróquia, após tomar “o sangue de Cristo” na missa, indo para casa, também vai em cana. O novo pai, após comemorar o nascimento do filho na maternidade, brinda com a família em uma taça de champagne as boas vindas do bebê, sai para comprar fralda, pega a blitz, vai também em cana.
Sem dúvida há que se punir o irresponsável que enche a cara, pega seu carro e sai feito louco atropelando e matando gente ou colocando a vida alheia em risco. A este “ser” sim, cadeia e sua carteira suspensa definitivamente. Agora penalizar um jovem que tomou um ou dois chopes com os amigos, um pai que bebeu uma taça de vinho no restaurante, ou que tomou uma cerveja num aniversário na casa do amigo, todos esses também são delinqüentes? A pena para um apreciador de cerveja é maior que a prevista para um estelionatário, o ladrão dos cofres públicos, os agressores e metade da pena de um assaltante ou seqüestrador. Esta lei absurda foi imposta a nós, sem qualquer consulta à sociedade aparentemente democrática. Colocaram dezenas de milhões de brasileiros como delinqüentes, milhares de empregos em jogo, expuseram esta cidade, que é o maior centro gastronômico e turístico da América, e ao país inteiro a uma lei que é injusta, abusiva, ilegítima e inconstitucional.
Como se não bastasse essa lei, existem os juízes de plantão. Até jornalistas esclarecidos, donos de blogs ou sites de cidadania, que são totalmente a favor da Lei Seca sem qualquer restrição, desconhecem a constituição e deveriam lê-la. A bancada evangélica do Congresso Nacional também apóia na íntegra esta Lei “anticapeta”. Existe ainda alguns pais mal informados que acreditam que o filho não vai mais beber por decreto. Mais outros tantos que ainda por preconceito, acham que os donos de bares são uns capitalistas exploradores, contraventores e outras tantas inverdades. Mudarão de idéia quando encontrarem seu filho na cadeia preso junto com criminosos por ter bebido um chope. Aí será tarde demais. Quero deixar claro que sou a favor da Lei com uma tolerância um pouco maior da dosagem alcoólica hoje permitida.
As cidades ficarão mais tristes, sem comemorações que brindam a vida, a arte e a convivência humana. Cada um deve ficar em casa fechado, bebendo sozinho e com medo de sair às ruas. Os encontros felizes e a amabilidade estão com os dias contados pelos excessos de radicalismos que os homens públicos também não aprendem a dosar.