A primeira campanha a favor do desarmamento foi em 1997 e deu início ao Instituto Sou da Paz, que tem sua sede na Vila Madalena. Fundado em 1999, o instituto trabalha em quatro áreas distintas: controle de armas, polícia, adolescência e juventude e gestão local de segurança pública. Através de projetos em parceria com governos, empresas privadas e particulares, o Sou da Paz desenvolve trabalhos para diminuir a violência entre a população. Nesta entrevista com a Ligia Rechenberg, coordenadora de gestão de conhecimento, ela fala sobre os projetos e ações que o instituto desenvolve na cidade de São Paulo.
Como surgiu o Sou da Paz?
Ele foi criado por estudantes da Faculdade de Direito da USP do Largo de São Francisco, em 1997. Uma pesquisa na época revelava que a segurança superava o desemprego nas preocupações dos paulistanos. A violência crescia muito e os sequestros eram novidade. Por conta disso, os estudantes resolveram tratar a violência por um lado diferente. Para fugir dos “contra isso…”, “contra aquilo…”, eles resolveram colocar uma mensagem positiva: sou da paz!
Discutir a violência é uma forma de resolvê-la?
De violência todo mundo fala. É como futebol. Todo mundo conversa sobre isso na mesa do bar, nas casas. Cada um tem uma opinião, contundente ou não. Pena de morte, redução da maioridade… Mas são opiniões sem base nas pesquisas. É mais emoção. São todos esses casos que aparecem nos jornais e depois desaparecem das manchetes até o próximo caso.
E como o Sou da Paz incluiu o tema da violência na pauta?
Colocamos na pauta do dia o problema da segurança pública de uma forma racional. E na época, 1997, a ONU divulgou um estudo comparando o controle de armamento em vários países e comparando número de homicídios cometidos com armas de fogo. No ranking, o Brasil aparecia como o país que mais matava com armas de fogo no mundo. E não estavávamos em guerra!
A legislação estava defasada?
Na época a legislação era muito pouco restritiva, as pessoas compravam armas sem dificuldade. Muita gente querendo resolver problemas banais com o uso de armas.
Como esses estudantes conseguiram mobilizar tanta gente?
Já tinha um monte de ONG trabalhando com geração de renda, criança, questões ambientais… e poucas ONGs trabalhando com a violência. Eles tiveram apoio da imprensa, de agências de publicidade, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da União Nacional dos Estudantes (UNE) e outras organizações.
Quem estudava o tema?
Havia o Núcleo de Estudos sobre Violência da USP que é um centro de pesquisa que coletava informações. Mas como ONG, com captação de recursos e implementação de projetos e desenvolvendo projetos específicos em uma comunidade e depois poder levar para os governantes, não existia nada no campo da segurança pública.
Quais as primeiras ações?
Primeiro, desarmar os espíritos. A violência estava crescendo e o estado não estava garantindo a segurança das pessoas. Todo mundo estava querendo blindar automóveis, mudar de país, aumentar os muros das casas… Ou comprar uma arma para me defender e resolver os problemas na base da bala.
A arma protege?
Não protege ninguém. Estudos comprovam que quem tem arma não está mais protegido. Os riscos de ter uma arma são altos. E é uma falsa ilusão de viver com mais segurança.
Qual foi o resultado da primeira campanha de desarmamento?
Nem tinha indenização pela arma entregue. Foi muito legal. Em quatro meses de campanha, foram entregues 1.700 armas de fogo em São Paulo.
As armas recolhidas na época foram destruídas?
Sim. Fizemos a destruição delas com um rolo compressor na Praça da Sé. Nestas campanhas, é preciso garantir que as armas entregues não serão usadas novamente.
Qual é a arma que mais mata?
A que é mais usada para cometer crimes no Brasil ainda é o revólver calibre 38, fabricado no Brasil.
O estado cumpre com sua função de dar segurança à população?
Primeiro, até a década de 1990, a polícia resolvia poucos crimes, era ineficiente. Por outro lado, a população pedia a Rota na rua. É contraditório. Ao mesmo tempo que o cidadão exige que a polícia não seja inteligente, atue como o “Rambo”, por outro lado ele quer se proteger e ter quem garanta a sua segurança.
O Brasil é muito violento?
Depende do tipo de violência. Temos muitos assassinatos. Mas também a violência contra a mulher, contra a criança, contra as minorias… Percebemos que na década de 1980 e 90, em países da América Latina, os crimes também disparam. Hoje em dia, a situação é diferente. O Brasil é menos violento. Tinha muita arma circulando.
Hoje a situação está melhor?
Sim. Os assassinatos estão caindo, mas temos ainda altos índices de violência. Na cidade de São Paulo, os homicídios diminuíram em 70%.
Qual a razão?
É uma conjunção de fatores. Primeiro, os homicídios caíram a partir de 2004, por causa do estatuto do desarmamento que estabeleceu uma série de critérios que dificultam que as pessoas comprem e andem armadas. E aqui o impacto foi mais forte ainda. Além do estatuto, a polícia fez mais blitz para prender as pessoas que ainda estavam com armadas.
A polícia também mudou?
A polícia paulista mudou o comportamento e começou a utilizar a inteligência, investigação e criou departamento para investigar chacinas. A falta de investigação era um estímulo ao crime. Os índices de esclarecimentos cresceram e isso desencoraja as pessoas a matar.
A impunidade é um estímulo para os crimes?
Sem dúvida. A questão não é o tempo de cadeia. É achar que não será preso.
O Sou da Paz atua onde?
Temos uma atuação local, nacional e internacional. Nossa ideia é sempre contribuir com as políticas públicas. Queremos contribuir com os órgãos de segurança para planejar melhor suas ações, seus recursos e formar melhor seus profissionais.
Os jovens são as maiores vítimas da violência?
São os que mais matam e os que mais morrem. Os mais vulneráveis estão na faixa de 20 a 24 anos.
Tem uma explicação?
É complicado, mas no Brasil temos muitos programas voltados para os jovens até 18 anos. Depois, não existem políticas para esses jovens.
Por que o jovem quer uma arma?
Segundo o sociólogo Luiz Eduardo Soares, a arma serve para o jovem dessas comunidades ter visibilidade e reconhecimento na sociedade. Através da arma ele consegue o respeito de seu meio através da violência. Os garotos andam armados para serem respeitados e se sentirem respeitados e as meninas também gostam.
Como a ONG se mantêm?
São diversas formas. Principalmente pelo financiamento de cada projeto que desenvolvemos. Fazemos parceria com financiadores muito diversos. Desde empresa privada, fundação internacional, governos, e pessoas físicas que fazem doações e elas são muito importantes para nós. São vários tipos.
São muitos os doares pessoas físicas?
Infelizmente, não.
Como as pessoas podem contribuir com vocês?
Elas podem entrar no site que tem todas as informações necessárias. Além de contribuição com dinheiro, as pessoas podem se cadastrar como voluntários. Temos um número bem bacana.
O que ele pode fazer na ONG?
Depende das nossas necessidades no projeto e do perfil dele. Quando temos atos públicos, precisamos de voluntários para esses atos. Não somos uma ONG assistencialista. Temos aqui uma pessoa que trabalha especificamente com os voluntários.
O que é o projeto Polícia Cidadã?
Já fazemos isso há alguns anos quando resolvemos trabalhar com a polícia. É necessária e ela precisa melhorar mais ainda. É preciso investir mais em inteligência e se preparar mais para atender à população. Tem o policiamento comunitário que conhece a comunidade e conhece os vizinhos. É um tipo de policiamento que dá muito certo. E o prêmio é para reconhecer o bom trabalho da polícia.
E a violência no trânsito já entrou na pauta do Sou da Paz?
Ainda não. Mas é objeto de interesse. Agora os índices de homicídios caíram e atualmente temos aqui em São Paulo um índice de dez homicídios/100 mil habitantes, que são em tese aceitáveis em algumas regiões da cidade de São Paulo. Mas ainda temos regiões com 50 mortes, que é um nível de epidemia.
Mas no trânsito tem muita gente morrendo…
Primeiro, tem muita gente morrendo por conta do trânsito. As pessoas estão perdendo a noção de civilidade. Desenvolvemos aqui a promoção pela Cultura pela Paz. Parece meio óbvio, mas questionamos valores e comportamentos errados e fortalecemos outros valores: cooperação, tolerância, diálogo, mediação de conflitos, que fazem parte da vida das pessoas. É preciso sentar para resolver os conflitos com conversa, não na bala!
Recentemente, aqui próximo, na Avenida Sumaré, um ciclista foi atropelado e morto…
Pois é. É o pedestre que não é respeitado pelo ciclista que não é respeitando pelo motorista…
O Sou da Paz atua fora do Brasil?
Participamos de uma rede latino americana dos países contra a violência armada, e tem muitos países que querem se espelhar na legislação brasileira de controle de armas, que é moderna, uma das melhores do mundo atualmente. Nós procuramos levar nossa experiência para outros lugares. Com a ONU, estamos trabalhando em um tratado internacional para regulamentar o comércio de armas como já existe para a carne, o remédio…
Quem criou o símbolo da pomba feito com as mãos?
Foram dois publicitários da agência DM9.
Desde o começo a sede foi na Vila Madalena?
Desde o início. Antes ocupavamos uma casa menor aqui perto de onde estamos agora. Neste endereço estamos desde 2001. Não teve uma razão específica. Foi um imóvel cedido por um integrante e outras ONGs como o Projeto Aprendiz que já estavam na região.