A professora Maria de Fátima Borges, 54 anos, tem uma vida que pode servir de espelho a muitas brasileiras. Filha mais velha de uma família do interior de São Paulo, nascida em Ribeirão Preto, mas criada em uma fazenda dos arredores, superou vários obstáculos até chegar à direção da E.M.E.F. Olavo Pezzotti, na Vila Madalena.
Por causa da difícil relação com o pai, militar da reserva, Maria de Fátima acabou vindo para São Paulo. Militou na esquerda católica, lutou pela derrubada do regime militar e contra a tortura. Deixou de lado o sonho de cursar Direito e formou-se técnica em conabilidade, de onde tirava seu sustento e ajudava a família, que permaneceu no interior. Trabalhar durante o dia e cursar pedagogia a noite fizeram com que ela alcançasse seus objetivos. Passou no concurso da prefeitura para a rede municipal de ensino e foi parar na periferia, onde assumiu pela primeira vez o cargo de professora.
Muitos foram os caminhos até a Olavo Pezzotti. Em 1997, Maria de Fátima assumiu a escola, considerada por muitos como “aquela que iria acabar”. Fez uma revolução, cujos resultados foram comprovados no ano passado. “A escola era praticamente desconhecida até a recente divulgação do teste nacional (Prova Brasil) de matemática e língua portuguesa, no qual seus resultados não só foram muito acima da média da cidade de São Paulo mas superaram os das capitais que ficaram em primeiro lugar”, escreve o jornalista Gilberto Dimenstein, no jornal Folha de São Paulo.
Para celebrar o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, o Guia da Vila entrevistou Maria de Fátima. Conheça melhor sua história.
A infância sofrida não a impediu de estudar. Como rompeu essa barreira?
Sempre gostei de estudar. Fui criada na roça e conheci escola somente aos oito anos, a revelia do meu pai. Ele tinha a idéia de que menina não precisava estudar, embora ele fosse um cara estudado. Era muito machista! Mas eu tive avós legais, uma mãe cabeça boa, e eu ia a cavalo, a pé, de charrete à escola, que era mista, e se chamava Escola de Emergência da Fazenda Santa Lúcia. Fazíamos da primeira a quarta série. Era um galpão, com um bancão de madeira, não tinha nem lousa… Sou a filha mais velha, ajudava a cuidar dos meus irmãos e era um pouco professora deles também. Alfabetizei-me em três meses. Tenho muito marcado o momento em que tive o insight: Ah! É assim que se escreve! Eu escrevi um palavrão!
E você se lembra qual foi o primeiro livro que leu?
A primeira coisa que li foi uma cartilha. Fui ter acesso a livros quando já estava na quinta série. Eu lia jornais, porque era o que tinha. Ia para a casa dos meus avós e meu avô lia muito. Só que livro era uma coisa sagrada e ele só deixava lermos os jornais. O primeiro livro que eu li de verdade foi Amor de Perdição, do Camilo Castelo Branco. E adorei! Depois li Machado de Assis. Apaixonei-me pelo escritor e li toda a obra dele. Virei uma rata de biblioteca!
Você estudou em colégio interno. Quais são suas memórias deste tempo?
Sim, estudei em um colégio interno em Jardinópolis, uma cidadela próxima a Ribeirão Preto. Era um colégio de freiras franciscanas. Fui parar lá porque meus pais se separavam e voltavam, voltavam e se separavam… Minha história é a história das crianças cedidas, ou seja, aquelas que moram um pouco com a avó, depois com a mãe, depois com a outra avó… Tenho muitas crianças dessas aqui no Olavo Pezzotti. Eu cresci nessa situação. Se alguém me perguntar quem foi determinante na minha vida, digo que foram os meus professores. Eles eram as pessoas que eu entendia como seguras, sabidas, que quando eu perguntava me respondiam, que me olhavam no rosto, que acreditavam em mim, me elogiavam. Eu tenho muito forte isso em mim. Os professores foram fundamentais na minha constituição.
Foi por isso que escolheu ser professora?
Acho que isso tem a ver com a minha escolha profissional sim. Mas não cresci e virei professora. Tateei na área empresarial, fiz contabilidade, porque achava que iria ser uma mulher de negócios. É claro que não descobri isso adolescente, mas sim quando já estava adulta. Naquela época, eu não queria ser uma mulher como a minha mãe, que aquentava a violência do meu pai, era dependente, pois não tinha autonomia financeira. E eu sabia que tinha que sair daquele lugar, precisava fazer diferente. Fui uma mocinha que a última coisa que me incomodou foi namorar. Eu queria trabalhar. E meus professores me deram muito apoio.
Seu sonho era estudar Direito. Em algum momento se arrependeu por ter seguido outra carreira?
Bom, eu sempre fui boa aluna e coloquei na cabeça que eu queria ser advogada. Afinal de contas eu queria fazer justiça! Mas não tinha como estudar. Vim embora para São Paulo. Tinha um amigo, lá de Jaboticabal, com quem, quatro meses depois, me casei. Já não estamos mais juntos. Moramos em vários lugares, em Minas Gerais, e acabamos voltando para São Paulo, pois eu queria estudar. Então, fiz Pedagogia. Trabalhava durante o dia e estudava a noite. Pedagogia era o curso que dava para pagar. Deixei o Direito de lado e não me arrependo. Fiz uma escolha. Prestei concurso para a prefeitura de São Paulo e fui trabalhar lá em São Miguel Paulista. Pegava o ônibus cinco horas da manhã e ia pra lá dar aula.
Valeu a pena?
Valeu. Fiquei três anos na Zona Leste. Por falta de professor, de coordenador, etc., fazia de tudo. Acabei assumindo a escola e aprendendo a ser diretora na marra porque era a única professora efetiva e pedagoga daquela unidade escolar, chamada E.M.E.F. General Milton Reis. Mas, em 1989, a Luiza Erundina ganhou a prefeitura de São Paulo e o Paulo Freire me chamou para ajudar, por causa da minha experiência na militância no PT (Partido dos Trabalhadores). Fui responsável pelo serviço técnico educacional. Depois de passar por outras escolas, vim para o Olavo Pezzotti.
Também foi militante política? Como foi essa história?
Vivíamos em tempos de regime militar, professores eram perseguidos… Eu, por ser jovem, menina, ia, de uniforme, participar de exposições lá no Ibirapuera. Mas na verdade ia pegar documentos… Ninguém ia desconfiar de uma estudante uniformizada. Eu não sabia nem o que estava carregando, mas sabia que tinha que ir. O diretor de teatro, o Flávio Rangel, escondeu muita gente perseguida pela Ditadura na casa dele e eu circulei neste meio. Meu pai era militar da reserva, então imagina o horror. Eu tinha a perspectiva de que, na educação, estaria militando.
Quais eram os principais problemas quando você assumiu a direção da Olavo Pezzotti?
Esta escola era vista como uma escola que ia acabar porque não tinha demanda. Os principais problemas eram o prédio escolar caindo aos pedaços, nenhuma disciplina na relação professor aluno, nenhuma proposta pedagógica, não havia senso do coletivo. O mobiliário caia aos pedaços, paredes imundas, um horror! Tudo não funcionava. Chovia, molhava as salas de aulas. O maior problema, para mim, não era nem ter que tirar a água com rodo. Mas bastava chover para mandarem os alunos embora. Era uma mania! A primeira providência que tomei, antes de tudo, foi que não se tira menino da escola! Só se pegar fogo! A segunda coisa foi providenciar a reforma. E ao conversar com pais e com as pessoas da comunidade sentia uma hostilidade, mas ao mesmo tempo um desejo imenso de ver uma mudança. Outra providência foi levantar a história do patrono da escola, Olavo Pezzotti. O busto dele estava lá no pátio; abandonado. Conseguimos fotos. Também fiz contatos, trouxe parceiros para a escola. Se precisasse, eu mesma ia ao posto de saúde ou a alguma clínica com aluno. Mandava bilhetes e telefonava sempre para os pais. Ficava no portão recepcionando os alunos. A reforma demorou um ano e meio e não tivemos nenhum acidente e muito menos paramos as aulas por causa disso. Foi determinante para os pais e a comunidade entenderem que a escola é séria. As pessoas são capazes de avaliar o que é trabalhar no sufoco, na precariedade, mas não desistir de trabalhar.
A Olavo Pezzoti, hoje, pode ser considerada uma escola modelo?
Eu não gosto de falar isso porque não acho que seja. Ela é considerada uma boa escola… Modelo, até agora não sei onde é… Como educadora, como uma pessoa que lida e lê muito sobre educação, acho que essa escola poderia ser três vezes melhor. Ainda não conseguimos afinar a orquestra, com uma proposta pedagógica excelente e com professores 90% comprometidos. Temos uma estrutura predial boa, jogos, cadernos, comida e livros. A escola tem tudo para funcionar bem. O que queremos é fazer da Olavo Pezzotti uma escola inclusiva, parcerias com PUC e USP para formação dos professores. Este ano trabalharemos visando a saúde, pois saúde e educação andam juntas.