Premiada escritora de livros para crianças e jovens, Anna Flora declara influência dos anos vividos na Vila Madalena.
Passei grande parte da minha infância aqui na Vila e na região de Pinheiros e me lembro bem do clima que o bairro tinha naquela época, com suas ruas de terra, muitas de casas e cortiços. Meu irmão vinha jogar futebol onde hoje ficam os prédios do BNH, antigamente um vasto campo de várzea. Ele fazia parte do Leões do Morro da Vila Madalena, um time amador que ganhava todos os campeonatos regionais. A nossa vida ficava sempre bastante centrada nas atividades do bairro mesmo: eu ia à Igreja da Cruz Torta sempre com meus pais e, no mês de junho, aproveitava a Festa de São João, que acontecia na rua. Nesta época, a Vila não tinha nada do bairro dos artistas e intelectuais que vemos hoje. Era mais um bairro periférico de classe média mesmo.
A coisa começou a mudar na época da ditadura, quando os estudantes da USP passaram a se mudar para cá com medo das batidas policiais que aconteciam no Crusp. Como os aluguéis eram baratos, muitos dividiam grandes casarões. Aos poucos, os artistas e o pessoal mais alternativo também foi tomando conta do lugar, principalmente a partir dos anos 70. Isso foi muito interessante porque, antes desta verdadeira corrente migratória, a Vila Madalena mais parecia uma cidade do interior, com direito a procissão, festas de rua e quermesse. Esta mistura foi muito interessante.
Com a chegada dos artistas, pensadores e jornalistas, muitas publicações de resistência acabaram tendo suas sedes na Vila Madalena. Um deles, “O Movimento”, era uma casinha onde eu via pessoas saindo e entrando discretamente. Esta movimentação toda aguçava muito a minha imaginação. Foi inspirada nesta época que escrevi o livro infanto-juvenil “A República dos Argonautas”, misturando o mito grego dos argonautas com o que via acontecer na Vila naquela época. Aliás, posso dizer que meus anos de Vila influenciaram completamente a minha poética, porque foi neste lugar que passei a minha infância (na adolescência, mudei para o Jardim Paulista, que era uma coisa mais urbana mesmo e, já adulta, fui morar sozinha na Pompéia). Um dos meus livros – ao todo, são mais de 39 – chama-se “O louco do meu bairro” e fala exatamente de um louco que ficava com seu apito controlando o trânsito, naquela época muito mais imaginário, das proximidades da Teodoro Sampaio.
É incrível como as lembranças do bairro ainda estão vívidas em minha memória. Já fui agraciada com dois Prêmios Jabuti de Literatura mas posso dizer que o mais gratificante, de verdade, é ver as palavras impressas, com aquelas ilustrações, levando adiante mensagens de temas que realmente importam, como amor, afeto, amizade e trabalho. Coisas que eu conheci e aprendi a valorizar nos meus primeiros anos, convivendo com a Vila Madalena.