Faz tempo que não ouço um samba-enredo realmente marcante. E as letras, na sua grande maioria, como dizia o saudoso Stanislaw Ponte Preta, apresentam-se como verdadeiros “sambas do crioulo doido”. Na intenção de encher a letra com todos os detalhes do enredo, as letras apresentam-se entulhadas de frases desconexas. Não é a aparente desconexão em poemas que reinventam a linguagem, que criam ou recriam termos da língua em contextos inusitados, dando-lhes novos significados. Infelizmente. Há sambas-enredo que marcaram e ainda hoje são cantados, discursivos ou não, mesmo não tendo seguido fielmente a lista de temas das alas. Quem não lembra de “Iluaiê, iluaiê, odara, assim cantava a nação Nagô?” Ou ainda: “Joaquim José da Silva Xavier/ nasceu a vinte e um de abril/ pela independência do Brasil/ foi traído e não traiu jamais/ a independência de Minas Gerais?”.
Pois é. Não ouvi e, portanto, não comentarei sobre as melodias dos sambas das duas escolas daqui de São Paulo de que vou falar. Mas do que vi no folheto com os sambas-enredo deste ano, uma letra me chamou a atenção. Não só pelo tema, que é preocupação atual, porém pelas idéias que a escola de samba apresentará na avenida, em contraponto com o de outra, esta da qual se esperaria a veiculação de mensagens condizentes com o bairro que representa. A primeira escola é a Imperador do Ipiranga. A segunda, a Pérola Negra.
A Imperador do Ipiranga apresentará o enredo “A Salvação do Planeta é o Bicho”. De cara o título me pareceu exagerado. Mas a letra leva suavemente a esta conclusão. Senão, vejamos: “Ecoa nosso canto de alerta/ desperta o Anhembi/ O mundo tem que mudar, é hora de refletir./ Senhor, ilumine a razão desta gente/ faça brotar a semente da preservação/ A mãe terra pede proteção.” Mais adiante:” “Chega de degradação/ mudaram a face da natureza/ o homem ambicioso e infrator/ rompeu seu elo com o Criador. / Num céu de lona, triste exibição” / (alusão aos circos que utilizam animais). “Na arena a maldade a se espalhar” ( alusão às touradas, vaquejadas e rodeios). “Anjos de proteção! Por nossos animais vem lutar/ Será que o novo tempo vai florir? /O homem vai se redimir/ assumindo enfim seu compromisso/ verá que a salvação do planeta é o bicho?”.
A Pérola Negra preferiu homenagear Jaguariúna através do enredo. Até aí tudo bem. Lá pelo fim do samba, porém, aparece “E na Maria Fumaça a história se passa, a evolução/ Tem festa de rodeio pra tocar seu coração/ Segura peão! / Hoje faz parte do cenário nacional…” etc. Se por “evolução” os vários autores do samba aludem a rodeio, usaram a palavra errada. Esta crueldade travestida de festa é uma involução do homem dito civilizado. E infelizmente faz parte do cenário nacional. A contradição é evidente entre o bairro de Vila Madalena, onde a Escola está sediada, importante reduto do Partido Verde, e esta apologia a uma prática – que fere frontalmente a Lei dos Crimes Ambientais – pelo sofrimento que é impingido aos bovinos e eqüinos.
A impressão que me fica é de que o samba-enredo foi trocado por um outro, perdido por aí, no que resta da consciência humana. Aí me vem a pergunta: a salvação do planeta com quem está? A resposta talvez se ache com os anjos de proteção junto às margens plácidas do Ipiranga.