Pedro Costa
O Nelson era o nosso motorista de todas as horas. Sempre tomando umas caninhas escondido. Malandro,bonachão e de bom coração. Aprendera a fazer máscaras e maquiagens com cera e parafina nos tempos em que ficou recluso lá no Carandiru. Não havia emprego para o ex-presidiário, mas o bondoso radialista o aceitou em casa e co-nosco ficou por muitos anos
O Nelson era o ‘faz tudo’. Todo final de ano era o garçon nas festanças . Lembro-me que em uma delas ele e meu pai, dois brincalhões, foram até o Mappin Movietone, lá no centro, pegar emprestado um manequim da vitrine. Conseguiram. Colocaram o bonecão sentado na privada de calças abaixadas e à meia-luz, no único banheirinho do velho quintal de casa, antes do início da festa. E chopes, muitos chopes.
Nho Totico, Vicente Leporace, Pagano Sobrinho, Auro de Moura Andrade, Araci de Almeida, Lima Duarte, Carvalho Pinto, Monsenhor Bastos, enfim, toda essa gente tomando canecas e canecas de chope. Operadores de som, locutores, políticos, anunciantes, cantores e atores como o Ivan Curi e gente que não acabava mais acotuvelavam-se em nosso pequeno quintal.
Lá pelas tantas, a coisa complicou. Era gente se contorcendo, já mudos, esperando em vão aquele sujeito desocupar o banheiro. A diversão dos dois velhos amigos era o apuro bem educado dos aflitos convidados .
Em viagens madrugadeiras via a paisagem envolta à neblina através do vidro da janela do carro, onde amassava o meu nariz. As palestras do meu pai nos cinemas do interior, o calor fantasmagórico das cidades, velhas beatas com seus velhos doentes, paralíticos e cegos guardavam logo cedo seu lugar para ouvir o CRONISTA DO CORAÇÃO. Malabarista inteligente das palavras do evangelho e do improviso.
Ao meu lado viajava a imagem do menino de gesso, São Domingos Sávio, de quem meu pai era devoto, do mesmo tamanho e rosto idênticos ao meu. Vestido de paletó azul, colete amarelo, calça marron, sapato branco e cabelos loiros; como eu. Começava a palestra. Ao lado de meu pai, a estátua do menino-santo, ambos no palco. As palavras em eco, saíam dos alto-falantes em tom apaixonado e vibrante. Na platéia do cinema, todos olhavam atentos ao orador. A música Ave Maria soava longe, dando um clima de meditação, que levava todos a comporem um colorido e púrpuro mosaico, onde anjos, demônios e matronas dançavam ciranda. Num determinado momento, as luzes do cinema, na hora combinada, se apagavam, e nisso, rapidamente na escuridão quase total, o Nelson sumia com a estátua do santo. Meu pai dizia atordoadamente: -Meu Deus ! O que acontece? Será sua presença! etc, etc… E a luz voltava. A palestra prosseguia agora num diálogo homem-Deus, cada vez mais crescente. Meu rosto pesava talvez pela maquiagem do Nelson ou pelo fato de me sentir realmente santo.
A performance atingia seu ápice quando era lançada a mim a pergunta: -São Domingos Sávio, responda-me se o milagre existe ou não… Ande, ande, ande!!!
Aos poucos ia me mexendo. O primeiro passo começava a ser dado, a platéia em assombro e perplexidade, velhas desmaiando, eu, andando pelo corredor do cinema lentamente em direção a porta, minhas mãos sendo beijadas, e no meu bolso amontoavam-se moedas e pedidos de bênçãos, os alto-falantes soavam palavras que faziam muitos chorarem. Aqueles movimentos lentos e tensos comprimiam a minha bexiga, causando em mim uma tremenda vontade de urinar. Desejo carnal!… Tranquilizavam-me. Na porta esperava-me o motorista, as reverências e os pastosos olhares de deboche, às vezes alguns tomates seguidos de: -Marmelada!
Sem dar tempo para as vozes de vaias e clamores, já estávamos na saída da cidade, onde encontrava com a comitiva e seguíamos viagem naquele Bel Air ano 60, deslizando sobre a paisagem da estrada até outra apresentação. Nirvanas férias de verão!
O mundo continuou pequeno. Foi quando entrei num boteco aqui da Vila Madalena para tomar um café e ouvi do balcão ao meu lado: -Já vi de tudo nessa vida, menos santo que toma café. Era o velho Nélson, agora com o uniforme do Exército da Salvação. Um de nós tinha que seguir carreira.