Ninho de asfalto

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Pedro Costa

Feriado municipal – 25 de janeiro, aniversário de São Paulo. A carreata do Piratininga Bar passava diante da praça que foi “o coração de São Paulo”, a praça Roosevelt. O Fordinho 1929 parou no farol, antes da rua Rego Freitas. A jardineira na frente, toca sem parar com a nossa banda de Jazz soprando tudo a todo vapor: “São Paulo, São Paulo meu amor”!
Por um instante ou talvez o tempo de se ler essa crônica, por minutos tudo ficou em silêncio, as cenas continuavam como num cinema mudo, o silêncio dava lugar à lembrança. A querida praça Roosevelt era toda plana e ao redor da igreja. Não havia blocos de concreto em cima nem buracos no subsolo. Nesta época eu era coroinha da igreja da Consolação, onde meus pais se casaram. E nesta mesma praça assisti perplexo “a 1º chuva de pétalas de rosas” saídas aos montes por um pequeno avião, jogadas pelo protagonista na época, meu pai, o festeiro radialista paulistano. Milhares de pessoas viravam seus guarda-chuvas para colherem as pétalas que caiam do céu. Todos os acontecimentos políticos e sóciais da época eram na praça Roosevelt, depois passaram para a avenida 9 de julho até instalarem sobre a avenida um enorme viaduto escroto, daí tudo passou a acontecer na avenida Paulista.
As procissões da igreja também aconteciam na praça. Nestas ocasiões os edifícios em volta jogavam papéis picados, às vezes alguns ovos de ateus brincalhões sobre o nosso cortejo apostólico romano, enquanto eu balançava de um lado para o outro um pote com brasa, incenso e mirra. Assim purificava-me do pecado gostoso de bebermos o vinho do padre e trocá-lo por água, álcool Zulu e groselha.
Aqui parado no farol, vejo aquele garoto circulando a praça atrás do andor sob chuviscos de água benta lançados pelo Monsenhor Bastos, enquanto meus olhos fora dali assistiam a putada toda deixando os inferninhos e aos poucos adentrando nos botecos da praça para o primeiro café, de onde lançavam beijinhos ao pequeno bando de afoitos coroinhas por elas já bolinados.
Tardes cabuladas para uns amassos ou para pegar uma “fita” no cine Bijou, assistindo Easy Rider, Jet’aime, Lando Buzanca e Fellini, tantas vezes fosse possível. Na ponta da praça, quase esquina com a Consolação, ficava o Baiúca, onde depois, sempre de penetra ia dar uma sapiada. Ouvir de pertinho Walter Vanderley, Nelson Gonçalves, Vinícius de Morais, Miúcha, Toquinho, Claudete Soares, Maísa, Isaura Garcia. Muitas vezes, pela pouca grana e idade não conseguia dobrar o porteiro, a solução era ficar no botequinho da frente, o bar Comunidade, com a caderneta alterada, tomando um “chinaps” e penteando com os dedos a rala pelugem do bigode que nunca virava pêlo.
Sempre fui pardal, à toa e urbano, minha praça era a Roosevelt. Fiz o ginásio também por ali, na baixa Augusta ao lado da confeitaria Bologna. O colégio era tão ruim que a noite virava boate, saudoso Frederico Ozanan. O diretor, professor João Batista Negrão dizia sorrindo que daria um fusca zero para o aluno que conseguisse repetir o ano.
Aí chegou a fase mais legal. O nosso companheiro Gil, mais velho e mais descolado aluga um “apê” na praça. Somente eu , Mário Ciappa e Mané Portuga tínhamos a cópia da chave da kitinete do Gil. Com ética, ordem e postura do partidão, cada um sacava o horário do outro. Só podia namorada, biscate não (só mediante gorjeta ao porteiro Gunga-Din). Havia os amigos de pensão, como o Geraldo Stuart, o pintor mais doido que conheci, pintava mais de trinta quadros por dia, mas em pensão não podia levar ninguém, casa dos pais então, nem pensar, hotel além de caro tinha que preencher uma ficha de hóspede que era um verdadeiro questionário que as namoradas não queriam. Era a onda dos “apês”. Tudo no estilo moderninho-bagunçado. Garrafa de gin vazia, livros empilhados no chão, porque tínhamos visto isso no Acossado de Godard. Pôsteres de filmes na parede, fotos do companheiro Che Guevara, Jean Seberg, Marlin Monroe, Ítala Nandi, Mylène Demongeot (a rival de Brigitte Bardot, mais coxuda), Cláudia Cardinali, misturado com Hemingway, Marx, Faulkner, Camus, Bakunin e Chaplin. Não se via a parede, aliás a única, que fazia divisa com o apê do lado. Vitrola Zilomag no chão ao lado de um tapume com almofadas. A Frigidaire dava choque e o chuveiro também, porém ali estava a liberdade. De vista total para a nossa praça pela estreita janela de onde avistávamos o cabeleireiro que ficava no prédio da frente, do outro lado, na ruela que vai sair na Caio Prado. No fim de tarde, as donzelas dos inferninhos zarpavam do salão. Eu as via entrar e sair inteiras e arrumadas.
No prédio ao lado estava o Star Dust, boate grã-fina onde todas as noites o famoso costureiro Dener chegava. O cara tinha estilo. Não era como um Clodovil, seu aprendiz meio-oficial. Sentava numa mesa enorme, cheia de mulheres incríveis. Acima de tudo era um boêmio, tinha lá os seus caprichos.
A praça era reduto dos teatros Arena e Oficina. Virando a esquina, havia a TV Excelsior na Nestor Pestana. Era comum trombar na praça com Tarcísio Meira, Jardel Filho, Célia Biar, Fúlvio Stefanini, Dina Sfat e toda essa gente desembocava no Gigetto, o grande glamour de São Paulo, o Capelleti a romanesca na madrugada entre as estrelas do teatro, cinema e televisão, e a praça Roosevelt era o grande palco de asfalto. Mais adiante, Laura abriria o legendário La Licorne.
Na praça também funcionou a Standard Propaganda com Duailibi e Alex Periscinoto, onde depois fui fazer uns “freela” de redator.
Não posso dizer: “Como era verde o meu vale” porque o chão da praça era negro-lunar. Gil morreu na guerrilha do Araguaia. Nossa liberdade entregava suas chaves. A praça onde cresci e vivi, começava o seu fim naquele início da década de 70, a se transformar num monstrengo arquitetônico com relevos de concretos inexpressíveis, deixando um deserto no meu peito, povoado com o mesmo silêncio lento e mudo lá do farol.
O filme rebobinava, meus olhos estavam ali de novo, dentro do Fordinho de antigamente. Vivo… Abria o sinal, enquanto a praça fechava-se definitivamente para mim, outra página era virada, agora a Vila abria-me as suas portas e de novo, o pardal faria um novo ninho.

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