Beto Silveira é um dos nomes mais conhecidos no meio artístico quando se fala em preparação e formação de atores. Há mais de 30 anos dedicando-se a este ofício e também ao desenvolvimento do ser humano em sua totalidade, ele comanda o Studio Beto Silveira desde 1998.
Seu grande mestre foi o ator e diretor russo Eugênio Kusnet (1898-1975), com quem trabalhou como assistente direto por seis anos. Mas a paixão pelas artes cênicas nasceu quando Beto ainda era criança e acompanhava o pai, José Roberto Silveira, que trabalhava em televisão. Foi pesquisando e estudando que ele desenvolveu seu método de preparação de atores e desenvolvimento humano. Foi professor na Escola de Arte Dramática da USP (EAD), na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e no Teatro Escola Célia Helena. A televisão também é um veículo bem presente na história do diretor, que implantou, ao lado do ator Cecil Thiré, a Oficina de Atores da Rede Globo.
Ana Paula Arósio, Fábio Assunção, Débora Evelyn, Débora Secco, Marcelo Serrado, Lilia Cabral e Marisa Orth já estudaram com o método que engloba exercícios de improvisação e técnicas de imaginação, o diferencial do estúdio. Com o desenvolvimento da imaginação e do autoconhecimento, o aluno tira as máscaras sociais e conhece seu verdadeiro “eu”. Isso favorece o trabalho no palco e na televisão.
Mas não são apenas atores que procuram a escola. Pessoas que querem melhorar sua maneira de se comunicar, seja com o público, nas empresas, nos seus relacionamentos pessoais, também buscam os workshops e cursos regulares.
Beto Silveira recebeu o Guia da Vila Madalena para esta entrevista.
Quando nasceu a paixão pelas artes cênicas?
Quando eu era pequeno, meu pai trabalhava em televisão. Era ao vivo e eu lembro da agitação toda. Uma vez ele me chamou para fazer uma participação num tele-teatro e eu adorei, principalmente porque eu pude matar aula! Isso, para um garoto de oito anos, era uma maravilha! (risos). Matei aula, fui para a televisão e ensaiei o dia inteiro… Participei de um comercial quando lançaram o milkshake! Meu pai morreu quando eu tinha nove anos e esqueci desse mundo completamente. Eu estudava em um colégio muito rígido e, naquela época, a gente tinha que ser ou engenheiro ou médico ou advogado. Mas não adianta, quando a coisa vem lá do fundo… Eu quis fazer teatro. Estudava em colégio de padres, com meninos da alta sociedade de São Paulo e eu era um simples Silveira. Um padre achou legal a idéia do teatro e montamos um grupo. Mas o padre, que era meu professor de latim, só falava sobre teatro e eu queria montar uma peça. Eu nunca havia entrado em uma biblioteca, e quando entrei pela primeira vez, li muito! O primeiro livro que li foi o que eu escolhi para a peça, chamado Inspetor Geral, do Gogol. E o padre me deixou de fora da peça porque reprovei em latim. Esse episódio mexeu tanto com meu corpo emocional que mudou a minha vida. Eu saquei tudo. Mudei de colégio e passei de ano. Continuei querendo fazer teatro. Ganhei a eleição para presidente do grêmio e tudo que fiz fui teatro. Nunca mais parei de fazer.
Explodiu a paixão…
Sim. Quando fui estudar teatro, conheci um professor, meu mestre, chamado Eugênio Kusnet. E a paixão desse homem me levou à paixão pelo teatro. É claro que comecei como todo mundo, queria ser galã do que seria hoje a novela das oito da Globo. Eu me tornei um ótimo ator, fazia teatro e todo mundo achava bom. Quando chegava na frente desse cara, ele falava o contrário. Eu comecei a ficar com muita raiva porque ele achava que eu não era bom. Um dia eu estava dirigindo uma peça e, quando terminei o ensaio, estava o Kusnet sentado na platéia, de surpresa. Ele chegou pra mim e perguntou: ‘Beto, além dessa vagabundagem aqui, qual outra vagabundagem você está fazendo?’ Falei: nada.
E o que aconteceu?
O Kusnet me disse que iria dirigir uma peça e se eu queria ser assistente dele. Topei e fiquei como seu assistente até a sua morte. E não deixamos uma aula dele sem ser dada. Sofri muito porque eu tinha 25 anos e ele tinha 77, já era um mestre. Os alunos estavam acostumados com o Kusnet, daqui a pouco chega o Beto. Conheciam-me porque eu estava sempre com ele. Mas foi muito difícil a batalha. Chegou uma época em que eu estava quase que imitando o Kusnet. Até que falei: parou! Eu sou outra pessoa. Foi quando tive um sonho que me disse muito e decidi começar a minha pesquisa. E hoje não sei dizer se o Kusnet chegasse aqui se ele me daria um abraço e diria: ‘Que legal’, ou se diria: ‘Beto, não é nada disso’.
E foi assim que nasceu o método Beto Silveira de preparação de atores?
Sim. O Kusnet trabalhava muito a imaginação. Achei interessante esse caminho porque tudo vem da nossa imaginação. Quando vamos conhecer uma pessoa, estamos predispostos a gostar ou a não gostar dela. É imaginação. Muitos dos amores, das paixões, das nossas raivas são frutos da imaginação. Você olha para uma pessoa e pensa: não vou com a cara dela. Psicólogos dizem que você está se projetando nela. Tudo bem, mas está se projetando naquilo que imagina ser ela, não a conhece. E comecei a perceber que a imaginação rege o nosso comportamento no dia-a-dia e em cena também. Se na vida me apaixono por uma Julieta é um comportamento da minha imaginação inconsciente. No palco terei que me apaixonar conscientemente por aquela Julieta durante duas horas somente. Acabou, tchau! Todo meu trabalho passou a ser desenvolver a imaginação das pessoas e o uso consciente dessa imaginação.
Mas é possível controlar a imaginação?
Sim, é treinamento, não existe regra nem varinha mágica. Achamos que a imaginação é uma coisa muito pequena. Mas tenho visto pessoas, aqui na sala de aula, que acabam se transformando como seres humanos com o desenvolvimento da imaginação e da consciência. Um exercício, por exemplo, é imaginar que tenho um canguru como amigo. E imagino um canguru de orelha quebrada e carente. Tudo que imagino nele são coisas que eu sou. Não tenho como usar a imaginação do outro, somente a minha. Tudo que a gente imagina é sempre a gente mesmo, sabia? E se projetar conscientemente no outro ou no objeto imaginário faz com que as pessoas se conheçam muito. Acredito que não tem outra maneira da gente chegar na gente mesmo se não através da imaginação. Muita gente me procura para desenvolver suas potencialidades. Até pessoas que ocupam altos cargos em empresas, não só atores. Canalizando a imaginação para um trabalho, há desenvolvimento.
E isso é a base da preparação de atores.
Preparar atores é uma maravilha, a minha vida. Se tivesse que começar tudo de novo não saberia escolher outro caminho. Mas eu gosto de preparar o ator a partir do ser humano. Pode ser um grande ator, como pode ser um piloto de avião, um grande fotógrafo. É perceber no outro aquilo que ele é. Eu só vou poder perceber você depois de me perceber. E o que é o trabalho do ator senão essa percepção? Como exemplo, Romeu e Julieta. Vou fazer o Romeu. É o que tem de Romeu neste Beto que se apaixona para brigar contra todo mundo por aquele amor. Embora o Beto não tenha mais 17 anos, ainda existe aquele Romeu aqui dentro. E é só com este meu Romeu que vou poder mexer. Eu vejo muita gente no teatro jogar fora a imaginação. Não precisa nada disso.
O teatro e a televisão perderam muito da imaginação por causa dos estereótipos e da velocidade com que as coisas acontecem?
Ainda temos coisas muito boas na televisão, como a minissérie ‘Hoje é Dia de Maria’. Houve todo um tempo de preparo e pessoas que se trabalham. Mesmo nessas novelas super estereotipadas que temos aí há atores que sobressaem porque são atores que se trabalham. O que um ator tem que aprender numa escola não é como ele vai fazer no palco ou na frente da câmera, mas sim o que ele tem que fazer entre um ensaio e outro, uma gravação e outra, na casa dele. Eu não conheço nenhum ator que seja vagabundo. Alguns não sabem como se trabalhar. Quando chegam no estúdio para gravar, o diretor está histérico, tem um monte de cenas para gravar naquele dia e tem horário, aquela coisa toda. O ator tem que estar preparado, senão vale qualquer coisa, engana. Agora, aquele ator que chegou lá preparado vai acabar sobressaindo.
Como vê a saída de muitos atores ‘globais’ para outras emissoras?
Acho que a tendência não é perder, mas ganhar. Sempre que existe uma concorrência há alguma coisa de saudável no ar. Em teledramaturgia, a tevê brasileira é uma das melhores do mundo. Estou falando da Rede Globo. E estamos vendo nascer a Rede Record com o mesmo padrão. É um trabalho imenso em termos mundiais, as novelas são vendidas para outros países, é um mercado de trabalho maravilhoso. A concorrência é muito grande e vão sobreviver os bons. Fala-se do cara bonitinho, da menina linda… Isso é tão relativo! A mídia cria isso, mas não necessariamente o que é colocado na mídia é o bom. Quantos galãs já protagonizaram novelas e a gente nunca mais viu na vida? Você fala para ele que é preciso estudar e ele diz: ‘Pra quê estudar? Tô ganhando 300 mil reais por mês’. Só que o salário acaba oito meses depois. Eu acredito que, da mesma maneira que o cinema mundial vive de atores ‘atores’, a nossa televisão venha a viver de atores ‘atores’. Embora o cinema seja diferente porque você atravessa a cidade, estaciona o carro, compra o ingresso e senta para assistir ao filme. Já a televisão não, fica ligada por hábito. Se uma cena muito boa está acontecendo, sem a gente notar, uma comunicação muito sutil nos atrai para assistir. E é isso que os proprietários das emissoras querem: que o público assista o trabalho deles. Por isso, cada vez mais, vamos precisar de muitos bons atores na televisão. Eles têm uma luta que o ator de cinema não tem. O ator de cinema tem a platéia como cúmplice, o de televisão não. Ele precisa ganhar o telespectador.
Você já preparou vários atores que hoje são famosos. Há algum que, para você, foi uma revelação? O que dificulta o trabalho com os atores?
É difícil trabalhar só com aquelas pessoas que rejeitam o trabalho, mas essas vão embora. Essas pessoas que estão aí, que passaram por mim, se dedicaram. Eu não acredito nem um pouco em talento. Digo isso por experiência própria. Já chegaram aqui pessoas que eu não sabia o que fazer com elas. E tem gente explodindo aí porque se trabalhou. Não há nenhum deles que não seja um grande trabalhador. Ana Paula Arósio, por exemplo. O que essa menina trabalhou! E ela viajava muito, já era modelo. Ela repunha as aulas até mesmo em turmas de crianças, na maior humildade do mundo. Os bons atores não são iluminados, eles ralaram muito. Tem gente que chega aqui pensando: o Beto vai me pôr na televisão. Quem sou eu para colocar alguém na televisão? Vou preparar e a pessoa vai a luta.
Como avalia o sucesso instantâneo que acontece com muitos participantes de programas como o Big Brother?
Todos nós passamos a vida inteira querendo sair do anonimato, por mais que a gente diga que não. E ser Big Brother é o sonho de muitos. Mas quando o programa acaba o vazio é inevitável. O sucesso vai durar 15 dias como a maioria das coisas neste País. É muito comum chegar Big Brother aqui e dizer que quer se trabalhar, que quer investir na carreira de ator, de atriz. Fazer sucesso ou não, independe de ser Big Brother. A mídia dá um monte de coisas, menos competência para fazer o trabalho. Há algumas pessoas que chegam aqui com um ego enorme. A primeira coisa é tirar as máscaras, sem machucar ou desorientar. As pessoas se olham no espelho e vêem o que querem, não o que existe de verdade. E ver o que existe de verdade é um processo lento.