Iki, o resistente

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Ele apareceu de repente na esquina da Aspicuelta com Fidalga. Branco, com manchas marrons, pêlo longo e coleira, sinal de que se perdera, fugira ou fora abandonado. Assisti durante cerca de três meses ele aproximar-se dos passantes como a mendigar; depois das inúmeras rejeições, expulsões e maus-tratos, fugir das pessoas e se degradar. Sobreviveu à custa da ajuda de algumas vizinhas como Janete e Ana Maria. Quando naquela manhã de fevereiro de 1997 eu soube que o CCZ o havia apreendido, decidi libertá-lo.
Eu não tinha idéia, ainda, do método cruel empregado para eliminar animais ali, método que só mudaria em dezembro de 2000. O que vi naquele órgão me abriu o coração e a mente para o quanto sofrem os animais nas mãos do bicho homem. Por isso dizia que Iki (brilho, em japonês) era a minha consciência.
Tive que conquistá-lo. Ele aprendera durante os meses na rua que as pessoas não merecem confiança. Tive que provar que algumas são diferentes. No momento em que deitou ao lado do sofá onde eu estava, espontaneamente, senti que havia ganhado um amigo. Por dois anos, cada vez que o levava a passear, se via um caminhão-baú estacava, olhava pra mim como se perguntasse “vão me levar de novo?”.
Logo constatei que sofria de um processo alérgico que se manifestava em crises repetidas de tempos em tempos, que o atormentavam. Precisou tomar cortisona por vários períodos, causa provável da catarata precoce que o fez perder uma vista. Apesar de tudo tinha uma bela, macia, brilhante e farta pelagem. Tudo observava, seguia meus movimentos, conhecia a rotina da casa, percebia quem era amigável ou não. Quando eu não ouvia o telefone, uma comida cheirava a queimado no fogão, latia pra me avisar. Compreendia muitas frases que eu dirigia a ele ou a outras pessoas. Era Iki, o inteligente. Enquanto os outros cães – que depois dele adotei – se escondiam e tremiam de medo quando ouviam fogos de artifício, ele ia pro jardim e latia pro céu, protestando contra o barulho. Naqueles momentos era Iki, o bravo.
Em setembro do ano passado, outra crise, devastadora desta vez. Levou meses para recuperar a pele e o pêlo que perdeu por se coçar desesperadamente. Ficou feio, emagreceu. Quem o via comigo no seu passeio matutino virava o rosto, se afastava pensando que era sarna ou outra doença contagiosa. Mas suas funções físicas e mentais continuavam tão boas quanto antes. Era meu Iki, o resistente.
A partir de maio passado escorregava e caía facilmente, evitava deitar-se. Eu o surpreendia cochilando de pé. Ao deitar ou levantar, gritava. Latia aparentemente sem motivo, principalmente à noite. A radiografia confirmou minha suspeita de problemas de coluna: tinha bico de papagaio e duas hérnias de disco, além de dois cistos palpáveis. Iki, o sofredor. Em julho, os gemidos e latidos se intensificaram – dia e noite. Só paravam à custa de antiinflamatórios, paracetamol, predinisona e… minha presença. Não queria que eu me afastasse nem por um minuto. A conselho de veterinárias, chegou a ter a primeira sessão de acupuntura. Alívio por um dia. No seguinte as dores voltaram. Passamos os últimos dias e noites sem dormir. Nada fazia efeito. Ele e eu chegamos ao limite. Ele, da dor. Eu, da exaustão. Pedi a Deus para aliviá-lo, mas parece que não pude ser atendida. Sendo arrogante ou compassiva, decidi por Ele. O que é pior? A morte ou o inferno em vida? Não é fácil brincar de Deus.
Iki salvo por mim de morte cruel no CCZ, foi por mim levado pra morrer, da forma menos agressiva que se pode proporcionar a um ser vivo e sofrido.
Nunca esquecerei seu olhar de total confiança em mim, entrando no carro, subindo obediente à mesa do consultório veterinário e recebendo a injeção do alívio final – aí então sob gritante reação. Desejo ardentemente não ter desapontado aquele olhar confiante. Presente e mútuo em dez anos, seis meses e três dias de convivência.

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