Fogueiras que o tempo não apaga

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Ao grande amigo Roberto Freire
in memorian

Como nunca deixou de passar, veio de novo o inverno. O frio cortante nos morros da Vila Madalena era assistido de longe nos arredores, pipas coloridas sinalizavam os balões de São João. As senhoras devotas dos santos fogueteiros, tinham que atravessar pela Vila para assistirem à missa na igreja do Calvário. Quem pretendia na época ir à missa, fazer um batizado ou mesmo precisar de um padre era lá em cima, subindo os morros, um verdadeiro calvário. Era década de 40, quando começou pelos moradores Acácio, Justo, João, Carlão, o Ligeiro, Seu Diniz e outros lá, a construção da primeira igreja da Vila. Um tal de padre Miguel, que num terreno improvisado na rua Girassol, construiu-se um marco de concreto com uma cruz de madeira com duas lanças. Semelhante a geografia da irmã mais velha, surgia a nova torre no Morro do Cruzeiro, mais um dedo indicando os céus. Era montada uma barraca coberta de lona, armava-se o altar. Chegavam as Festas Juninas e a festa rolava noite adentro.
Tempos que as festas juninas eram nas ruas, abertas a todos. A molecada, nestas épocas, pulava o muro do cemitério São Paulo logo cedo para roubar as velas. As tochas dos balões eram produzidas por esses pequenos infratores da alegria e do espaço sideral da Vila Madalena. Existia aqui dois ou três grupos baloeiros, que aos poucos foram se “apagando” do cenário. Faziam com perfeição e de tamanho exagerados imensos balões.
Era comum olharmos para cima e ver uma vaca voando, um imenso touro ou um bolo aceso, o pião iluminado com centenas de velas e o perigo no ar era esquecido pelo fascínio do olhar.
Nesta época, na rua Laboriosa, todo ano, era fechada com bambu pelos moradores. E o pau comia. Sempre presente nestas festas de rua, estava o Zé da Três, o Zé Leiteiro, o Felipe, o Gordo e o Vadão. Uma grande fogueira no meio, quadrilhas, pipoca e quentão. O Rubão providenciava, bingo na calçada, moradores davam prendas, corrida de cavalo, saco, busca pé, rojão de vara, pau de sebo, cobra-cega, cadeira, rabo de burro, a rua de barro e os bigodinhos e costeletas desenhadas a carvão em cada carinha.
Aprendi, logo cedo, que o melhor brinquedo é aquele que se faz, não o que se compra. Nasce junto com o nosso espanto. Tem a mesma cara, sabemos de quando e quanto ele é possível. Assim é o “farolete de lata de óleo pendurado no arame com brasa dentro”, basta girar, girar até o som do zumbido, virar uma espiral de luz, entra-se num verdadeiro túnel do tempo, percorrendo lugares que o tempo não viu, só os moleques descendo e subindo as ruas escuras da imaginação. É uma procissão de sorrisos ateus nas noites de Santo Antônio. A latinha do tempo me ensinou que a cidade não pode mais ser o que foi, só podemos ser, a qualquer momento, o que já fomos.
Até hoje existem fogueiras que nos meus olhos jamais se apagarão, a garotada avermelhada ao redor, nossa sombra movimentando as paredes das casas, noite estrelada sem lua, orelhas frias e olhares acesos, atentos para cada momento que salpicavam da imensa fogueira de fagulhas, estalos de pequenas lembranças nas grandes noites de São João.

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