“A casa vai dançar”

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“Se um veleiro repousasse na palma da minha mão
Sopraria com sentimento e deixaria seguir sempre rumo ao meu coração…”
(ZECA BAHIA)

Pelas alamedas da memória anda o cronista entre as ruas que escreve, tecendo entrevistas às suas lembranças, onde estão os fatos que marcaram certos momentos e instantes que de fato aconteceram, enquanto seu coração de boêmio se emociona com a música e a poesia que sempre rondam e molduram estes momentos guardados. Porém, acredito também, que não é só de memória que vive a lembrança. Há a saudade que se desprende sorrateira do tempo e vem solta e feliz nos encontrar. Giro a tramela, abro a porta e deixo-a entrar.
Pela Vila, aqui ou ali sempre se ouvia uma frase que se repetia pelos cantos: “Minha casa vai dançar!”.
Era o começo do fim das casas da Vila Madalena; meados da década de 80. Casinhas singelas, de muros baixos, ares provincianos, telhados rebaixados, quintais com árvores repletas de frutas, gente modesta e festeira.
Na rua Iperó, ao lado da Praça do Fórum, morava o Fred Góes, músico do extinto “Raízes de América”, Zeca Bahia, o compositor de Porto Solidão, e o inseparável cão “Chorei Demais”, o qual adorava abocanhar, num salto certeiro, os ovos cozidos cor de rosa lançados do balcão pelo saudoso Seu Pedro, da Mercearia São Pedro.
Com a notícia de que “a casa vai dançar”, mais uma que seria demolida para dar lugar aos prédios que chegavam, Fred chamou os amigos para uma cantoria regada a muita cerveja em sua casa. Neste “luau” que ocorreu por esses dias frios de julho, não poderia faltar uma fogueira para aquecer a roda de amigos ao seu redor no quintal da simpática casinha.
A festa seguia noite adentro, céu estrelado, gente emotiva com a despedida, e nas paredes da velha casa eram escritos à carvão pequenos poemas de despedida. A lenha começa a acabar. O Fred do quintal olha a velha janela aberta da sala já meio caída e tira um pedaço dela para alimentar o fogo que subia junto com a bebedeira geral. Mais engradados pendurados na mercearia do Seu Pedro. Dança, violão de mão em mão e mais fogueira. O forro que já não estava também lá muito firme foi indo para o fogo assim como cadeiras, mesa, os caibros do velho telhado e algumas portas e batentes, idem. A certa altura, num ímpeto de lucidez o nosso dono da casa, solta um grito que paralisa a festa: “A minha cama não, ainda durmo aqui hoje!”. Tarde demais, quase toda a casa e a mobília já haviam virado brasa e fuligem, relembra o amigo jornalista Fernando Barros e para mim foi a despedida mais “punk” que presenciei em toda vida.
No prédio que hoje lá está, mora o nosso cartunista Paulo Caruso. Ao lado ainda resiste à casa do Tonhão, o jardineiro e o taxista Kazuo com mais de 80 anos e que ainda joga beisebol, formando a invisível resistência horizontal da rua Iperó.
Em noites de lua cheia, confessou-me certa vez Caruso, que nesta época do ano acorda no meio da noite ouvindo estalos de madeira queimando, um cheiro de fumaça vindo da garagem do prédio e um uivo longo e triste do “Chorei Demais”. E que ao sair na varanda, São Jorge, lá da lua, manda-lhe uma piscada insinuando que é um trote, fantasias de um antigo quintal que outrora acolheu mais uma casa que dançou.

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