A camisa do Gilmar

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Todos os jogadores de futebol eram pobres, mesmo depois de famosos.
Paulo Machado de Carvalho, chamado “Marechal da Vitória”, levou o Escrete de Ouro para ganhar a copa de 1958 na Europa. O Marechal contratou um simpático dentista com conhecimentos de medicina clínica, Mário Trigo, para completar a equipe técnica e tratar de jogadores com dor de dente, lombriga, dentes cariados, anemia e unha encravada, além de divertir e animar toda a equipe, dando um apoio também psicológico.
Na desorganização brasileira, a relação dos 22 jogadores foi entregue na última hora para a FIFA e por um erro deles deram a camisa 10 para o Pelé, o futuro rei então reserva com 17 anos. Didi, com o pé machucado, quando ortopedia era coisa só para grã-finos, começou a chutar a bola com o bico do pé batendo por baixo da bola, um lance divino, semelhante à rotação da Terra, a bola seguia sua rota girando e se tornando indefensável para qualquer goleiro. Estava criada a “Folha-seca”.
A maneira de trazer nossos ídolos do futebol para perto era colecionar figurinhas, montando nossos álbuns, os quais davam prêmios. A outra era montar o time de botão. Os garotos paulistanos colecionavam ou pediam para os tios e avós os celulóides de seus relógios velhos, aquela capinha transparente. Para os celulóides grandões, os de batacões, montávamos a nossa defesa e no ataque colocávamos os celulóides menores, mais ágeis para driblar melhor entre o jogadores adversários. Os garotos nordestinos faziam caprichosos botões de coco ou de chifre de boi, lixados um a um até ganhar forma de pequenos discos.
Crianças mais audaciosas, como criadores do universo, escalavam seus astros preferidos a sua seleção de sonhos no tabuleiro verde, misturando flâmulas e jogadores no mesmo lado, juntos e impossivelmente no mesmo time.
Os torcedores dos grandes estádios eram separados apenas de seus ídolos por um baixo tablado de madeira de 40 ou 50 centímetros ao redor do campo, que serviam apenas para dar espaço ao único lugar onde havia propaganda como a do xarope São João, cera Parquetina e sapatos Vulcabrás.
Hoje os alambrados que separam o campo dos torcedores são de 17 metros de altura, deixando os jogadores como garotos-propaganda gladiando-se numa arena enquanto torcedores feito pitbulls trocam ofensas e porradas para todo lado.
Éramos garotos do bairro do Bixiga, hoje Bela Vista, ao redor do vale Anhangabaú. Nosso campinho de futebol era num imenso terreno baldio, em uma rua sem saída, travessa da rua Avanhandava. De um lado a mansão da família Caldeiras, sócia e dona da Folha de São Paulo e, de outro, uma maloca com vários barracos onde o jardineiro, seu Sebastião, era o morador mais antigo e o dono dos barracos.
Lá morava a linda Maria, uma mulatinha sarará, a qual foi dona sem saber, por muito tempo, do meu coração de criança envergonhado de paixão. Enquanto a bola rolava solta no campinho, Maria passava despercebida, menos por mim, rebolando com arte e cadência levando uma lata d’água na cabeça.
Foi com muita tristeza quando um dos nossos jogadores, já maior de idade, cabo de polícia, veio mostrar orgulhoso para todos uma peça íntima da Maria, como um troféu de sua conquista. A cada vez que o coração se partia o futebol remendava. A bola muitas vezes teve a cara do cara, que quase sempre eu enchia o pé com gosto aos gritos dos companheiros: “passa a bola, pô”, “não chuta direto, caramba”.
A televisão chegava. A copa de 58 foi a primeira a ser televisionada. Assistíamos aos jogos bem depois. O rádio nos salvava sempre. Foi nessa época que a recém inaugurada O.V.C, Organizações Victor Costa, que meu velho pai como apresentador exibia um programa na TV Paulista – canal 5. Programa de calouros, prendas e leilões diversos. Nesse dia inesquecível, um dos objetos a serem leiloados era a camisa do Gilmar, o goleiro da seleção de 58. Eu e meu irmão Beto ficamos elétricos, doidos por ela. Mesmo preocupado com a lisura dos leilões, meu pai permitiu que os dois garotos fizessem então o seu lance. De acordo com a soma de nossos trocados, um pouco mais que a quantia de dois chocolates Diamante Negro, foi o entusiasmado lance ao vivo da platéia. Logo um senhor, pelo telefone, aumentou a nossa pequena oferta em cem vezes. A câmera focalizou nossa decepção. No auditório, os telespectadores continuavam a subir os lances. Já estávamos nos retirando cabisbaixos quando o martelo bateu e deu a camisa àquele senhor. Ainda no ar, pelo telefone, este senhor, comovido com os dois garotos que lá estavam, achou bonito duas crianças quererem tanto uma camisa de futebol e ofereceu a nós o que havia adquirido.
Não acreditávamos no que acontecia, tal a alegria. As camisas dos goleiros eram pretas ou cinzas. Não existiam coto- veleiras, apenas um acolchoado na própria blusa. Era grossa, espessa e pesada. Ficávamos olhando ela pendurada na frente de nossas camas, imaginando mudos tantas defesas impossíveis que ela havia abraçado. O Beto organizava até filas aos domingos para a molecada olhar de longe a camisa.
Não demorou muito tempo para que a levássemos ao campinho do AAA (Associação Atlética Avanhandava).
Araçá, um cara topeira, frangueiro de tudo, que insistia sempre em pegar no gol, foi um dos que usou a camisa do Gilmar. Ele voava no gol até para bolas rasteiras. Daí em diante o gol que ninguém queria ficar agora era o mais preferido. Todo mundo queria jogar no gol, vestir aquela camisa e se sentir o maior goleiro do mundo, assim ela passou pela mão de toda maloca.
Usamos muito essa camisa. Jogar com ela ou algum de nós que a usava, fazia-nos sentir um Garrincha, Didi, Pelé ou Vavá e o próprio Gilmar, aquele esquadrão mágico que tanto nos encantou.
O troféu aos poucos era “diluído” pelos seus fãs. Foi virando trapo o que um dia foi de ouro, jogou junto com os melhores do mundo e voltou para encerrar sua carreira num campinho varzeano do Bixiga, distante das arquibancadas. Cada fio daquela camisa ficou gravado em nossa pele e memória.
Hoje, vendo os goleiros com suas camisas luminosas, dry fit e modernosas, lembro daquela camisa simples e negra como uma estrela singela que brilhou tanto num céu de outras constelações.

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