Pedro Costa
Lembro quando meu pai, em alguns domingos do ano, nos levava para visitar os nossos parentes em Bragança Paulista. Éramos uma escadinha de seis irmãos. Todos atrás na caçamba da velha caminhonete Chevrolet 56, a Marta Rocha. Na época o trajeto era longo e demorado. Saíamos cedinho e chegávamos sempre no horário entre onze e meia e meio dia, com aquele apetite de criança e adolescente, justo na hora do almoço.
Lá chegando, meu pai abria a caçamba, a nossa cachorra Bolinha disparava na frente e a molecada correndo atrás, entrando na casa das tias naquele corredor longo e estreito do velho sobrado da pracinha. O corredor de tábuas com porão em baixo, anunciava em eco a nossa entrada galopante, com seu enorme pé direito. Hoje não mais tão grande quanto era. O casarão ampliava nossos berros na chegada, em direção à copa, de onde vinha aquele cheirinho de alho e de comida recém feitinha. Num passe de mágica, os pratos que estavam sendo degustados iam direto para as gavetas da mesa de almoço. A criançada perguntava: “Ué, vocês já almoçaram?”. “Pois é, estávamos só conversando!”, diziam as tias com a indisfarçável boca cheia. Depois descobrimos para quê serviam as famigeradas mesas com gavetas. Após os beijos temperados e os apertões de bochecha, seguíamos para outros parentes que, já avisados da nossa chegada na cidade, ficavam à postos nas varandas, em seguida éramos surpreendidos com a célebre frase Bragantina: “Olá, quando vão ?”. Tal era a preocupação das tias daquela tropa toda “pousar” por lá.
Mas, era sem maldade. Aprendemos depois a rir disto. Vovó os justificava, dizendo dos tempos da 2º Grande Guerra Mundial na Itália, então recém acabada, onde os alimentos eram racionados e escassos, e de lá todos os parentes vieram.
O fato é que a cidade para nós ficou com fama de “pão dura”. Mas, como o “pão-duro” é irmão do “Filão” que é sobrinho do “Cara de Pau”, primo do “Penetra”, o tio do “Serrote” e amigo do “Muquirana”, estamos todos em família.
Saber “filar” é uma arte. Do mesmo jeito que o carioca nos convida para ir a sua casa e ainda reclama por até então não termos ido, só que nunca dá o endereço. Coisas da antiga corte imperial. Geralmente o “Filão”, “o Cara de Pau” são simpáticos, sabem convencer e entreter a “vítima”. Não é um João Gilberto da vida, que além de antipático, é chato e metido ao mesmo tempo. “Tomar uma” às custas do outro, sem ser impertinente, é outro dom. Têm sempre aquele que nunca põe a mão no bolso para rachar a conta do bar. Escapa até do cafezinho da esquina, que convida e esquece a carteira.
Sem exceções, o Filão é bom de conversa, discute vários assuntos, está sempre arrumado, manda a companheira esperar dentro do cinema para não pagar a entrada, anda sempre de carona e é extremamente gentil, elogia tanto, que na maioria das vezes o “homenageado”, sem graça e orgulhoso, acaba pagando a conta do balcão.
Certa vez, fiz questão de acompanhar um destes aqui pela Vila Madalena. Depois de uma rodada de pastéis na feira da Mourato com uns amigos, percebi que o sacana mostrou a exagerada nota de cem reais, reparei em tempo que o número final da nota era o mesmo que eu já havia visto com ele em outros “ameaços” de pagar a conta. O comerciante sem troco, o pessoal constrangido acaba arrecadando entre si, adiantando o pagamento do pequeno débito, tive a pachorra de anotar o número desta nota uma outra vez. Era sempre essa nota, ou um talão de cheques que mostrava para dois ou três cafezinhos. Esperto, ele dá um tempo com aquela moçada e vai para outras bandas. Passado esse tempo, volta cheio de novidades e a história se repete.
Melhor fez o Arnaldo, filho do “Seo” Julião, que tinha um bar ali na Mourato Coelho. O Arnaldo resolveu na época fazer uma “eleição” para todo mundo da Vila escolher através do voto, quem era o maior de todos, o mais “Filão”, o maior “Serrador”.
O ano era 1993. Os candidatos foram inscritos. Lembro que o Arnaldo não deixou muito tempo para a inscrição, senão haveria apenas candidatos sem nenhum eleitor. Fechou logo a inscrição. Havia o Nica, que já contei das suas aqui no Guia, figura carimbada. O Walter Boi, a Suely, outra figura da Vila, que não saia do Bar da Silma, fazia um jogo de bicho pra moçada e dormia quase sempre na perua Marajó do “Seo” Julião, a Malú que tomava além, de todas, tomava conta de uma senhora daqui da Vila e o Rochinha, o “bom vivant”, não fazia nada, não trabalhava com nada e só usava terno e gravata, chegava no bar do Julião, e só dizia bom dia depois de filar um cigarro do Arnaldo.
Feita a cabine de votação. A tarde começou a apuração dos votos, o Troféu do Serrote esperava pelo ganhador. Cada voto lido em voz alta, era um brinde geral. A Vila comparecia em peso para a escolha do ganhador. Na contagem dos votos, ganha em 1º lugar, sem segundo turno, o Rochinha. Ele levanta o Troféu Serrote. Daí em diante ninguém dormiu mais aquela noite na Vila. Tinha neguinho cantando na árvore de frente ao bar do Julião até de manhã cedo. Em 2º lugar ganhou o Nica, esse de branco, ao lado do Arnaldo de camiseta, o Tio Miro na ponta e com o troféu na mão, o vencedor Rochinha.
Hoje, quem quiser ver o troféu está lá com o Arnaldo, na sua serralheria, na Fradique, quase esquina com a Purpurina. Troféu que o Rochinha guardou pouco tempo. Logo depois, ele chegou no Arnaldo, jogou uma conversa, dizendo achar mais interessante o troféu em exposição no bar do que em sua casa, e que trocaria o mesmo por uma garrafa de 51. Assim vendeu o que não comprou e tomou como sempre gostou, no Vasco, na faixa, no peito, na boca e no grátis, amém.