Da manjedoura ao calvário

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Algumas ilustrações de Natal ainda trazem a imagem de José a pé e Maria carregando a Criança, montada num jumento, na paisagem nevada. Este tipo de imagem natalina cedeu lugar a logotipos de empresas ladeando caras sorridentes com presentes nas mãos.
Sinal dos tempos, sintoma de uma sociedade em que os sentimentos são cuidadosamente estudados para fazer vender. Um abraço sem presente, pouco vale. Vidas sem valor mercantil tornam-se descartáveis como copos plásticos. É preciso criar um estatuto do idoso pra lembrar à sociedade, onde o marketing é tudo, que aqueles que não mais “produzem” merecem consideração. Ironicamente, já ouvi um idoso dizer: “Ter gato? Mas pra que serve um gato?” O velho era “moderno”, mas incapaz de enxergar o que há de comum em sua própria situação e a do gato numa sociedade utilitarista…
Elimárcio de Bastos Belchior, 28 anos, mineiro, é moderno. Diante de uma situação em que os jumentos no Ceará vêm sendo abandonados nas estradas porque já não exercem seu antigo e importante papel de transportadores de carga, teve a idéia de criar um abatedouro de jegues para exportação de carne. Japão, Holanda e Bélgica seriam o destino daqueles que tanto ajudaram o homem nordestino a transportar alimentos e água para sua sobrevivência. Agora, estes mesmos animais morrem de fome e sede em depósitos do DERT (Departamento de Estradas, Rodagens e Transportes) do Ceará.
Geuza Leitão (UIPA-Ceará) explica que a Lei Estadual 13.045/2002 dispõe sobre a apreensão de animais soltos nas estradas estaduais feitas pelo DERT. Após a captura eles são levados para os currais das 10 unidades no interior do estado. Passados 7 dias os animais têm que ser leiloados ou doados a ONGs, escolas e hospitais públicos, desde que cadastrados no DERT e providenciado o transporte. Bois, cavalos, os donos vão buscar. Os jumentos, nem de graça alguém quer.
Geuza continua: “São quase mil jumentos apreendidos por mês. Como não sabem o que fazer com tantos animais, após 7 dias de fome e sede nos currais, os que sobrevivem são jogados bem longe pelo DERT, mas eles acabam voltando. Muitos são atropelados, ficam agonizando nas estradas; ou são mortos a tiro por motoristas”. Menos infelizes os que têm morte rápida. Há cerca de um ano, um funcionário do DERT denunciou a Geuza, por telefone, que o órgão, em Quixeramobim, contratara três criaturas em Canindé para exterminar os animais: “Paulinho dá uma paulada na cabeça do animal; Por Estaca o empurra para a vala, cavada por tratores de esteira; João Alves joga as pás de areia”. Os jumentos estavam sendo enterrados vivos. Geuza confirmou a veracidade da informação e denunciou o caso publicamente. O DERT da capital mandou suspender a matança, embora depois tenha passado a negá-la.
O governador Lúcio Alcântara prometeu a Geuza pôr em prática a idéia apresentada por ela para diminuir a quantidade de jumentos abandonados: contratar veterinários para o DERT a fim de sacrificar os animais atropelados, em agonia; e castrar os cerca de 5% dos machos para que não engravidem os 95% de fêmeas da espécie. Até agora a promessa não foi cumprida.
O DERT, CCZs do interior, Polícia Rodoviária Federal já não se dão ao trabalho de levar os jegues para os currais. Os jericos vão direto para o matadouro em Santa Quitéria. O prefeito deste município, Tomaz Figueiredo, quer a reeleição. Reformou o prédio de uma empresa extinta (COMAPE) para ser utilizada como abatedouro e construiu a estrada que o governo estadual asfaltou. Promete criar muitos empregos para quem produzir artefatos de couro e de ossos. Conta Geuza: “Devido à nossa resistência o abatedouro não começou a funcionar e por isso estão sacrificando muitos animais. Na última reportagem Elimárcio disse que vai receber de graça – com ajuda dos órgãos do Estado – também cavalos, bovinos, caprinos e ovinos”, o que contraria a Lei citada. “E ele diz que está ajudando a SEMACE (Secretaria do Meio Ambiente do CE) que deu a Licença de Funcionamento; além de outras Secretarias, bancos estatais, SEBRAE, SINE/IDT, Ministério da Agricultura; além de contar com o apoio da Federação das Indústrias do Ceará (FIEC)” relata em uma de suas mensagens.
Por precaução, no caso do abatedouro vir a funcionar, Geuza cobrou o uso da pistola para insensibilização dos animais de consumo, exigida pela Instrução Normativa nº 3, de 17/01/2000, do Ministério da Agricultura; além dos documentos para que o empresário possa fazer funcionar o estabelecimento. “Não tem nenhum documento” afirma ela.
E faz um apelo: “Preciso de muitas cartas para o Governador Lúcio Alcântara, Av. Washington Soares, 707 – Palácio Iracema – Bairro Água Fria, Fortaleza – CE. CEP: 60.811-340. Também para a Procuradora Geral de Justiça do Estado do Ceará, Dra. Maria do Perpétuo Socorro França Pinto: Rua Assunção, 1.100 – Fortaleza – CE. CEP: 60.050-011.
1- Peçam a eles que não permitam que o empresário mineiro leve nossos jumentos para abate e exportação da carne.
2- Haverá a extinção da espécie, contrariando o art. 225, § 1º, VII da Constituição Federal.
3- O estado não pode doar os animais apreendidos pelo DERT, pois contraria a Lei 13.045/00; nem pode ficar a serviço de um particular.
4- O jumento é símbolo do Nordeste, já prestou muitos serviços ao homem. Não merece ter um fim tão indigno”.
No site Em Defesa dos Eqüinos (http://br.geocities.com/equinosbrasil) encontram-se e-mails de outras autoridades. No caso do Governador do Ceará, e-mail não funciona.
A subespécie de zebra Equus quagga quagga, um outro eqüideo, foi extinta pelos bôeres da África do Sul. O último exemplar morreu no Zôo de Amsterdam em 1883. Este projeto de morte para exportação, de Elimárcio Belchior, avaliada em cerca de 250 toneladas/mês, faz prever – para o Equus asinus do Nordeste – a mesma sorte.
Enquanto escrevo esta coluna, o leitor a lê, estes animais plácidos sofrem sua morte assim como viveram, em silêncio: antes, portando em seus dorsos carga vital para os humanos; no fim, o peso da sua impiedade. O método rudimentar ainda utilizado clandestinamente no abate dos eqüideos – cavalos, burros, jumentos – é atroz. Para que liberem o ácido úrico do organismo, sem insensibilização, são mutilados ainda vivos para que suem e sangrem até morrer.
É de se esperar apoio maciço nesta luta, até agora solitária, da UIPA-CE.

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