A retomada do samba

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Já dizia Dorival Caymmi que “quem não gosta de samba, bom sujeito não é! É ruim da cabeça ou doente do pé¹!”. Samba corre nas veias, faz o coração bater mais forte e o corpo inteiro querer gingar… O batuque africano aliado ao nosso suingue deu origem a esse ritmo tão característico do povo brasileiro.
De uns tempos pra cá, o samba saiu dos guetos e desceu os morros! Essa redescoberta se deu principalmente entre os mais jovens e o estigma de música das camadas menos “privilegiadas” da sociedade, da periferia e das favelas, caiu. Seja samba de raiz – no sentido de samba mais antigo, ou pagode, não resta dúvida: aumenta a cada dia o número de adeptos, tanto que, aqui na Vila Madalena, também chegaram bares especialmente destinados ao samba.
Para falar sobre a ascensão desse tipo de música, dessa expressão cultural tipicamente brasileira, o Guia da Vila Madalena conversou com Cícero Castilho Cunha, proprietário do Samba Bar, e um apaixonado por essa cultura (ele é Rosas de Ouro, aqui em São Paulo, e Mocidade Independente de Padre Miguel, no Rio de Janeiro), e também com a produtora musical Cidinha Zanon, que há 30 anos trabalha “com samba e para o samba”, como diz. Ela é uma das sócias do Traço de União, casa eleita pela revista Veja São Paulo como a melhor em matéria de música ao vivo em 2004.

Como vocês vêem o crescente interesse pelo samba, essa retomada cultural, principalmente pelos jovens e adolescentes, geralmente influenciados por outros tipos de música?
Cícero: Acho muito legal o samba estar sendo mais divulgado, porque samba era um negócio sempre de gueto, não muito difundido. As pessoas, por mais que conheçam, só falam de Paulinho da Viola, por exemplo, de quem aparecia mais na mídia e que hoje é chamado de samba de raiz. Sempre fui contrário a essa denominação. Existe samba de muita qualidade que foi feito antigamente e é samba de qualidade até hoje. As pessoas confundem muito pagode com samba ruim. Ao contrário. Pagode é festa no samba, é quando todo mundo versa, tem o improviso e isso é muito legal.

Cidinha: Para nós é muito bom o aumento do interesse porque estamos, há uns 30 anos, perseguindo esse objetivo para fazer com que os jovens retomem essa história, para fazerem coisas novas e boas. Para isso, é fundamental que eles conheçam as músicas e compositores que já existem. E também vejam as coisas novas que surgem de todos os lugares. No Traço de União, por exemplo, o público é de 14 a 80 anos. A Vó Maria, viúva do Donga, foi uma pessoa que já nos deu o prazer de cantar na casa.

Mas vocês concordam que ainda há um certo preconceito, principalmente em relação ao pagode? O que fazer para mudar isso?
Cícero: Aí é que está. Existe samba bom e samba ruim. É um negócio meio complicado até de entender. Eu sou totalmente contra certos grupos que se dizem de pagode. Eu não gosto, mas não posso dizer que é ruim porque existe um milhão de cópias vendidas de CDs. Então, tem muita gente que gosta. A música que eles fazem é denominada por eles mesmos de pagode. E não é. Pagode é um outro tipo de samba, é uma festa no samba. É quando todo mundo dança, bate na palma da mão, isso é pagode. Se o pagode fosse essa música que muitos grupinhos fazem, Zeca Pagodinho não teria o nome que tem. E ele canta samba raiz, Velha Guarda da Portela… Não seria Pagodinho! Isso é que é meio complicado de explicar porque é uma visão muito antiga. Dona Ivone Lara, Candeia, são considerados como samba de raiz. É raiz, mas é de qualidade, uma música cantada até hoje e super bem aceita. É meio como ‘dinossauros do rock’! Eu não gosto muito do nome ‘de raiz’, mas é opinião pessoal. O samba é a nossa principal música, ainda existe um preconceito enorme de que samba está ligado à favela, um jeito pejorativo de falar. Muita gente ainda não descobriu o samba e como ele é legal para nós. É o maior orgulho que nós podemos ter em nível musical. É o samba que a gente faz e faz muito bem feito. As pessoas que estão no samba, a humildade que elas têm, a cultura que elas geram é a cara do nosso País. O samba é um ícone reconhecido em todo o mundo. É a música mais lembrada em festas, em comemorações, do jeito da gente. Muita gente pode não gostar de samba, mas quando escuta ‘ô coisinha tão bonitinha do pai’, sai cantando!

Quando você fala sobre o pagode, o que falta é conhecimento para as pessoas poderem discernir o que é bom do que não é?
Cícero: Sim, falta é acesso à informação. Hoje em dia, é muito diferente. Quando eu tinha uns 12, 13 anos, estudava em escola particular, e por eu gostar de samba era considerado maloqueiro. Falavam ‘o cara vai em escola de samba’! Ou ‘não deixo meu filho ser amigo dele’. Então, eu era muito criticado por causa disso. Hoje, de forma alguma isso acontece. A molecada sabe os enredos das escolas de samba, desfila… Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, por exemplo, são unanimidades e ajudaram a difundir o samba pra caramba! O samba só tem crescido dessa forma, em todos os níveis.

As casas de samba dão mais oportunidade para quem vive do samba mas não se destaca na mídia?
Cícero: Sim, é uma boa oportunidade e a idéia é justamente valorizar as pessoas certas num lugar idealizado e projetado para receber o samba com carinho e respeito. Com amor ao que se faz, amor ao samba, e isso deu fruto já no primeiro ano de existência, tanto do Samba quanto no Traço de União. Provamos essa qualidade que tanto falamos. Todo ano a Veja faz uma edição dos melhores bares e restaurantes de São Paulo. Pela primeira vez duas casas foram indicadas: o Samba e o Traço de União. O Traço ganhou como uma das melhores casas de música ao vivo de São Paulo. Concorremos com Blen Blen, Bourbon Street, Grazie a Dio!, gente muito grande que já vem de muito tempo. Para nós isso foi uma vitória e tanta!

Cidinha: Para se ter uma idéia de como foi, inauguramos o Traço de União em 2003, e a idéia surgiu de um grupo de amigos que se reunia para fazer rodas de samba aos sábados. Até que o restaurante onde nos encontrávamos fechou e precisávamos de um outro espaço. Conseguimos esse espaço no Largo da Batata e resolvemos fazer a nossa roda, com feijoada. E a coisa foi tomando um corpo legal e estamos completando o primeiro ano. Faremos uma grande festa de comemoração [Até o fechamento desta edição, a data da festa não havia sido confirmada] e pretendemos contar com a presença da nossa madrinha Beth Carvalho, e do padrinho, que é o Luis Carlos da Vila. Outra novidade é que estamos montando um bloco de carnaval com as três casas indicadas para a premiação da Veja São Paulo: Traço de União, Samba e Pirajá. Para nós, do Traço de União, foi uma grande surpresa porque com oito meses de funcionamento ganhamos o prêmio de melhor música ao vivo. Foi uma premiação que não esperávamos pelos menos no primeiro ano. Então, vamos unir os três bares. À princípio, o bloco vai sair do Samba, vai ao Pirajá e depois para o Traço de União. Será no domingo antes do Carnaval [Dia 30 de janeiro]. Vamos organizar e a nossa intenção é dar uma contribuição para o carnaval de rua: queremos colocar o bloco na rua e se Deus quiser fazer virar um calendário legal, com muito samba, muita marchinha… O bloco vai se chamar ‘Se eu for eu fico’. Esperamos que seja tão bom que se as pessoas forem, irão gostar e ficar! A nossa madrinha será a Beth Carvalho, que também é madrinha do Traço, e o nosso padrinho será o Oswaldinho da Cuíca por ser o maior representante desse momento do samba de São Paulo. Queremos agregar essa coisa do Rio com São Paulo também no bloco. E vamos homenagear o seu Nenê de Vila Matilde. Gostaríamos que ele fosse o padrinho, mas ele será o presidente de honra do bloco porque o desfile das escolas de samba de São Paulo será uma semana depois e ele estará assoberbado com a escola dele. E o Oswaldinho completa esse horizonte para nós. Mas não podemos deixar de homenagear o seu Nenê, que é o maior e legítimo, falando em escola de samba de São Paulo, representante do samba da capital.

O Rio de Janeiro sempre foi considerado o “berço” do samba. Ainda há rivalidade entre a capital carioca e São Paulo?
Cidinha: Não, caíram as barreiras, graças a Deus. Na realidade, eu vivo no samba e para o samba há 30 anos, e eu nunca tinha vivido uma situação dessas porque no meio do samba você não percebe essa diferenciação. O que existe é o seguinte: o samba de São Paulo tem uma pegada, o do Rio tem outra pegada, na Bahia tem outra… Mas é samba, não importa de onde seja. O suingue de cada região é muito rico. Não podemos perder esse horizonte, não tem que se tornar uma disputa. Ao contrário. Temos que agregar os valores de cada região desse imenso Brasil que só tem coisa boa, juntar isso tudo e mostrar para todo mundo. É isso que tentamos fazer na programação do Samba e do Traço de União. Agregar esses valores para que não haja discriminação. Tem que ser bom e ter qualidade, só isso.

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