Bixiga, bairro operário e, como tal, não havia saneamento básico nem iluminação pública. Terrenos íngremes que sobravam das ocupações oficiais e sem planejamento logo eram ocupados por barracos, feitos de restos de construções. Nasciam e salpicavam suas malocas pelo chão e tetos de zinco. Enquanto naquele bairro o morador Adoniram Barbosa diluía em sambas apaixonados a nossa Pauliceia sempre desvairada.
Num braço de rua sem saída lá do Bixiga, atual Bela Vista, era comum a molecada fazer fogueira à tardinha. Lenha de móveis velhos, retalhos de caibros de construção ou tocos de madeira de barracos demolidos eram juntados rápidos pelos meninos do bairro.
Seu Sebastião, mulato de meia idade, forte e trabalhador, nas horas vagas sanfoneiro, era o dono do terreno por ele ocupado há anos, onde construiu alguns barracos de madeira e alugava-os a preços razoáveis à mão de obra barata do Bixiga, mais conhecida como a Maloca do Tião. De lá surgiram nossas primeiras musas.
Quando a infância começou a adolescer naquelas meninas, latas d’aguas na cabeça se erguiam simultaneamente. Subiam o pequeno morro dos terrenos com uma mão sobre a lata d’água enquanto a outra segurava ou sensualizava o peso na cintura, muitas vezes amparadas pelos gentis meninos que juntos cresciam. Filhas de mestres de obras, carpinteiros e pedreiros. “Nossas paixões tiveram sempre bons alicerces”, mais tarde confessou um dos meninos daquelas fogueiras.
No fundo da Maloca do Tião era cultivada uma pequena roça comunitária. Influências talvez vindas das senzalas e de guetos italianos anarquistas. De lá, a meninada levava algumas espigas de milho e batata-doce quando a fogueira virava brasa. Ao redor íamos envolvendo tudo no braseiro. Entre uma mexida e outra com os galhinhos nas mãos, a nossa cumplicidade feliz de morar naquela cidade e de ter aqueles amigos. Menino negro do barraco de madeira com menino branco de casa de alvenaria, nada importava.
Éramos um só menino e uma única infância. Toda vez que sinto o cheiro de fogueira, lembro-me de cada um deles, os sorrisos lambuzados de milho, batata-doce assada e lindamente sujos de carvão.