Tempo das chuvas

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Fico olhando a chuva que cai. Décadas já se passaram e ainda não deixei a tentação infantil de desenhar em vidro embaçado, cujos mesmos desenhos até hoje não evoluíram, continuaram intactos no tempo, tal qual como um Peter Pan que se nega a crescer.

Neste instante chove lá fora, vejo pela janela, surgir lá do passado um carro em minha direção. É o Simca Chambord da família, não resta dúvida. Vem espalmando poças de chuva da rua de paralepípedos enquanto mais e mais água cai sem piedade das escuras nuvens paulistanas.

Meus irmãos de olhos arregalados com as bochechas encostadas nos vidros das janelas do Simca, assistem o corre-corre dos bondes, o rangido das galochas e o enrosco de guarda-chuvas na Barão de Itapetininga, enquanto meu pai tenta enxergar através do para-brisa com a manga do paletó, que agora vejo seu rosto aflito. Vó Júlia do lado. Sempre mandona, atenta a tudo. Eu absorto, desenho.

Não mais que de repente, o limpador do para-brisa deixa de funcionar. Aliás nunca vi em toda vida um carro que quebrasse tanto como o Simca. Meu velho pai sempre contava essa história para os amigos: “De tanto o Simca quebrar, costurei a placa dele na borda do paletó, de tanto empurrar o esse carro”. E de fato isso de quebrar acontecia em toda saída desse automóvel da garagem. Lá ia o Nerso, exímio motorista, como já contei sobre ele aqui, dirigindo durante a semana e nos fins de semana, meu pai.

Chuva que Deus mandava, limpador quebrado. Minha Vó, ligeira das ideias, puxa da bolsa um rolo de barbante. Amarra uma ponta em cada haste do limpador. De um lado, no banco de trás meu irmão puxava o barbante pela fresta do vidro, o limpador subia, de outro eu puxava, o limpador descia. A chuva apertava e a gente acelerava o puxa-puxa, diminuía, nós também. Aos poucos o velho Simca entra na garagem. Exaustos, os sorrisos foram se diluindo na fina garoa da janela, enquanto guardava de novo essa cena na garagem da minha memória.

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