A caridade é um enigma

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Sempre rejeitei a nobreza desse gesto ao longo da minha vida. Porém, com o passar dos anos fui revendo essa posição, até chegar aos dias de hoje, reconhecendo na caridade algum sentido. Será esse um predicado próprio da terceira idade, ou da melhor idade como preferem alguns? Sendo essa uma certeza, serei eu, daqui pra frente, um velhinho caridoso? Deixo ao tempo essa revelação e em seguida revejo meus procedimentos para verificar em que momentos exercitei a caridade.
Certa feita, num plantão do Centro Cultural, recebi os irmãos Almeida (já falecido) e Maria, moradores antigos da Vila, para uma conversa triste sobre suas dificuldades. Tinham sido despejados cruelmente e não tinham pra onde ir. Entre lágrimas e arroubos próprios dessa situação: “vou invadir a primeira casa desocupada que encontrar”, dizia Maria, Almeida sempre muito doce, pedia calma. Daí me comprometi a visitar o amigo Walmir, pois a “Pacheco Imóveis” nunca faltou nessa hora. Assim fiz. E fiquei de levar os irmãos até lá, para juntos buscarmos uma solução. Dois dias se foram e nenhum contato. Na manhã seguinte, aos prantos Maria me interrompeu querendo falar comigo urgente. Pedi que ouvisse o que eu tinha combinado com o Walmir, mas ela não demonstrou muito interesse, e foi dizendo que estava mais preocupada não com a sua moradia, pois de alguma forma se virava, mas com o seu cachorro que se encontrava no fundo da casa, de onde fôra despejada. E soluçando: “tenho jogado pelo muro dos fundos da casa vizinha, comida e água todos os dias, porém agora eles chamaram O Centro de Controle de Zoonoses para levar o meu cãozinho”. Que eu posso fazer, amiga? Ponderei. “Deixá-lo aqui uns dias até que eu possa alojá-lo”, disse ela. Em minutos, já de volta com o animal e logo se despedindo anunciou: “o nome dele é Xirú”. Até hoje não sei se é com “x”, ou com “ch”. O fato é que jamais soube de Maria desde aquela data. E faz cinco anos que o meu sentimento caridoso late para os estranhos e festeja com abanos de rabo para todos os amigos, especialmente para o Rafael.
Vocês podem pensar que é só comigo que a caridade teve um desfecho estranho, mas observem que de alguma maneira temos notícias nebulosas nos jornais sobre esse assunto. Pessoas queixando-se por não conseguirem enviar os donativos arrecadados para as vítimas do Tsunami e ninguém faz nada pelas criancinhas indígenas que estão morrendo de fome no Mato Grosso. Não dá pra entender. A caridade é um enigma.

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