Mãos ao alto, o pivô da estória

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No início dos anos 80, os dentistas recém-formados da vizinha USP transformaram algumas casas da Vila em pequenos consultórios, com seus diplomas ainda dentes-de-leite, pendurados diante da cadeira.

Jovens doutores ficavam trêmulos de emoção quando entrava uma corajosa cobaia, com dor, porém duro. Era comum nestes consultórios, logo na entrada ver alguns quadros, poemas enquadrados, pedaços de madeira entalhados, ou abajur feito da casca de coco. Dava pra saber qual o artista que por lá havia passado e fez a sua permuta. Estes consultórios eram verdadeiras galerias dos artistas da Vila.

Paralelos a esses novos consultórios vieram também os primeiros bancos à Vila.

Após sair de um destes novos consultórios, fui direto ao banco. Já no caminho das ruas e calçadas vinha estranhando aquele pequeno intruso que acabava de chegar a minha boca; “o pivô da estória”. Entrando no banco, uma fila. Filas! Pra quê servem as filas… Pensava na fila. Porém, a língua não pensa, ela quer expulsar, impedir o intruso de ficar. A língua é a inimiga dos dentistas. É a serpente na toca dando chicotadas, botes e fisgadas. Assim foi todo o trajeto, estranhando o coitado do pivô provisório. Como um cúmplice que finge não ver, deixo a língua agir por si só. Fim da fila chega a minha vez.

Encosto no balcão de vidro do caixa, quase na altura do meu queixo. A sisuda japonesinha diz: – “Pois não!” E a batalha interna entre língua e pivô prossegue freneticamente. Abro a boca: “Eu queria…” Finalmente a língua empurra o intruso pra fora do ringue. Eram três degraus de vidro até chegar ao colo da caixa. O dente cai lentamente, minha boca pasma, aberta e agora banguela. A japonesinha olhando para o dente na sua sainha, solta uma sequência de gritos agudos e aflitos, de braços erguidos acenava sem parar de gritar.

Imediatamente dois seguranças, um de cada lado, apontam as armas para mim e gritam: “Mãos ao alto, ladrão!” A caixa e eu de mãos para cima, ela abanando os braços esticados e eu de boca aberta tentando mostrar a falta do dente.

Os seguranças se desculpam. A caixa ainda com nojinho. Pedi aos guardas que segurassem minhas pernas diante do balcão para pegar a droga do pivô sobre a saia da japinha.

De vergonha, nunca mais fui naquele banco, muito menos voltei nos consultórios-galerias.

pedrocosta.pira@uol.com.br

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