Rock and roll

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Não sou roqueiro, embora tenha dançado em cima das cadeiras de cinema quando o Bill Halley e seus Cometas tocavam “Rock Around the Clock” ou mesmo ouvindo na vitrola portátil da minha irmã o long play de Chucky Berry rolando várias vezes sem parar. Depois, vivi a famosa divisão entre Beatles e Rolling Stones sem jamais deixar de gostar de Bob Dylan e achava o Jimi Hendrix genial, mas meio chato, acima do meu simplismo harmônico. Todos filhos de múltiplas exclusões: a música de origem negra, a batida de blues, as marcas sofridas da classe pobre de onde vieram, os diabos do bem contra o deus do mal.
Nesta mesma época, meu velho pai, também influenciado, apelidou um casal de araras que ganhara, de Rock and Roll.
Ainda morávamos numa casa no Bexiga. Era comum nos quintais das casas, pés de frutas, horta, galinheiro e outros bichos como pato e coelhos. Araras eram raras, mas nós tínhamos. Um galo também. Entre barulhos das freadas dos ônibus da Avenida 9 de Julho que ficava logo abaixo de nossa casa, destoava o galo Elvis confundindo amanhecer com entardecer, ecoando seu canto por entre as ruas da Bela Vista. Como já contei aqui algumas vezes, meu pai tinha um programa matinal na antiga rádio Nacional, “por todos os caminhos”, muito ouvido por pequenos sitiantes do interior, aos quais declarava seu amor aos bichos e saudades de um sítio que nunca teve. Os ouvintes, para desespero de minha mãe, sempre mandavam um animalzinho qualquer de presente lá em casa. Chegavam cansados e aflitos enquanto eu e meus irmãos já cuidávamos de dar-lhes boas vindas e encontrar um cantinho para os recém-chegados.
Assim a garotada se divertia com uma verdadeira fazendinha no centro de São Paulo, dividindo o mesmo teto com eles. Caso a lei que hoje classifica como crime inafiançável o cárcere de certos animais, estaríamos na época, bem enrolados. Ao som de Bob Dylan aquele “country” até que combinava.
Desta maneira aprendemos a gostar dos bichos e a conviver com as suas diferenças. A cabrita Janis Joplin que minha irmã não tirava do seu colo, certa vez estranhou o tatu que por lá também vivia há muitos anos. Na testada que a Janis deu-lhe, o tatu que não era nada levinho, na arrancada virou a tartaruga de barriga para cima, derrubou a tigela dos patos e se mandou cavando um túnel em direção à 9 de Julho e nunca mais apareceu. Meu irmão Beto ficou desolado com a perda. Não melhorou nem quando ganhou de um caipira simpático a sua coruja domesticada, que passava as noites em claro vendo-o dormir, a observadora Jim Morrison.
Este amor aos bichos contaminou a minha família. A bronquite que desde garoto me atormentava, fazia com que todos se preocupassem em encontrar uma maneira de expulsá-la de mim. Dormir com a tartaruga debaixo da cama, diziam minhas tias, seria o único jeito de me curar. Durante muito tempo foi minha companheira de quarto. Uma outra simpatia que ensinaram à minha avó era mais simples. Bastaria arrumar uma carpa, peixe de sangue quente, diziam, ainda vivo, colocar um copo ao lado da tábua, cortar a cabeça do peixe num só golpe e na seqüência encher o copo com o sangue ainda morno da coitada e beber tudo em seguida. E adeus bronquite. Veio a carpa viva num saquinho com água. A coitada veio de longe. Tratei rapidamente de colocá-la num lugar mais livremente. Enchi a banheira com água fresquinha e a pequena Rita Lee ali viveu por muitos anos, até morrer de morte natural, talvez de tédio, pois já estava enorme e na banheira em que habitou durantes esses anos só dava marcha a ré e ia pra frente, assim sucessivamente.
Talvez aquele pequeno ecossistema doméstico tenha começado a fechar o seu ciclo com a chegada do gato Seixas. Quando este chegou, a simpatia agora era de chás noturnos de pelo de gato com poejo e hortelã para acabar de vez com o peito que não parava de chiar. Tanto ficou a bronquite como o Raul Seixas careca.
O verdadeiro final de tudo foi apocalíptico. Num domingo de manhã lá no Bexiga, as poucas tvs que haviam no bairro assistiam pela Tv Tupi em preto e branco um rapaz que lançava o seu Baú da Felicidade e seus calouros. O restante do bairro dormia, outros trocavam os alpistes das gaiolas dos quintais ainda de pijamas quando o apresentador Silvio Santos interrompe o seu programa , câmera em close, diz: “O meu colega de rádio Pedro G. Costa perdeu suas araras que voaram pelo bairro do Bexiga agora de manhã, quem ver ou souber do casal de araras do Pedro, favor nos ligar agora. “Assim foi repetida várias vezes pelo Silvio .Adoniran Barbosa, morador do bairro e amigo de meu pai, prometeu fazer um samba-consolo, para as araras fugitivas.
Naquela manhã, todos à procura de Rock e Roll e nada. A portinhola da gaiola amanhecera aberta. Da cama ouvimos o ensaio de seus vôos e seus gritos ardidos de liberdade como nunca havíamos ouvido. Pulamos da cama e às vimos voar entre os prédios aos berros de “AraraAraraArara” ecoando por todo o vale do Anhangabaú, emparelhadas e batendo asas sem parar, sumindo lentamente de nossos olhos,enquanto chorávamos gritando “Rock e Roll , Rock e Roll…” Muita gente saía nas ruas e nas janelas dos prédios sem entender de onde vinham , aqueles estranhos pássaros gigantes e o que era aquele tal de Rock and Roll que cantavam ardentemente sem parar, em ecos de “Arara-Arara-Arara…!!”
Viraram jantar de mendigos debaixo de alguma ponte, sei lá. Mas, preferimos pensar, que do vale do Anhangabaú, alcançaram o Rio Tietê, seguindo os caminhos dos Bandeirantes até reencontrarem seus iguais nas matas e cachoeiras de Mato Grosso. Coincidentemente, ia-se também mundo afora, por outros caminhos, esse tal de Rock and Roll que acompanhou minha história, assim como a de vários garotos deste planeta.

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