Olhai os “Liras” da Vila

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“A residência da alma é a memória”… Santo Agostinho

Viajar de trem era a verdadeira viagem. A infância que teve o trem como transporte aprendeu a pensar de forma circular e espiral, entendendo melhor as estações da vida e da história, os encontros e as despedidas, o pensamento interligado em composições diferentes, isoladas e engatadas ao mesmo tempo, rumo à um único destino. Exagero ainda mais, por acreditar que na época dos trens nasciam mais artistas, cineastas, fotógrafos e maestros do que hoje, pois aprendiam logo cedo a assistir as cidades e as paisagens passando, quadro a quadro, diante das janelas dos vagões que seguiam editando cenas românticas e inesquecíveis na memória dos garotos.
A partir da década de 50, no governo Kubitschek, os investimentos foram transferidos às rodovias para incentivar a propagada indústria automobilística. Aos poucos, as rodovias foram se tornando mais modernas, os veículos mais baratos e individualistas e os trens lentos e obsoletos. A paisagem de tudo mudava drasticamente. Neste mesmo trilho é possível compreender grande parte da nossa história contemporânea. Hoje quase todas as rodovias são consideradas deficientes, ruins e péssimas. Mas, não é nesta estação que quero descer ou me enredar. Nem o vagão é este, nem o espaço que uso é jornalístico, pertence aos jornais, lá onde a realidade grita em cada manchete.
Onde quero chegar? Naqueles que pegaram o trem dessa história: “A Estação Lira Paulistana”, o lendário teatro Lira Paulistana, pólo aglutinador da inovadora geração musical revelada nos anos 80, conhecida como Vanguarda Paulistana. “O Lira era o teatro da moçada, com um tamanho ideal para bandas que estavam começando. Como tinha 200 lugares, com umas 30 pessoas na platéia, qualquer show já poderia dar certo. A arquibancada era de madeira, mal dava para se sentar direito. E o camarim era só um corredorzinho”, relembra Mário Manga, o Biafra do irreverente Premeditando o Breque, um dos raros grupos daquela geração ativos até hoje.
O nosso “maquinista” era o Gordo (Wilson Souto Júnior) um dos sócios idealizadores do Teatro Lira Paulistana que comemoraria agora 28 anos de fundação, se ainda existisse.
Foi naquele espaço um tanto precário, instalado em um porão da Praça Benedito Calixto, que centenas de bandas e jovens artistas, hoje simpáticos grisalhos, viveram suas primeiras experiências profissionais. Como a Banda Metalurgia, Grupo Rumo, Língua de Trapo e Sossega Leão, desativadas como vagões da Fepasa, os Titãs do Iê-Iê-Iê (hoje Titãs), Ultraje a Rigor, tornaram-se famosos em todo o país. Algumas bandas ainda estão trilhando por aí. Cantoras como Tetê Espíndola, Eliete Negreiros, o falecido Itamar Assumpção, Ná Ozete, Luiz Tatit e tantos outros. Lembro-me de cruzar sempre na platéia com o Arrigo Barnabé, pois a sua banda, na época, por ser numerosa, não cabia no palco do Lira, porém sempre estava lá.
Ao lado do Lira, na velha padaria, ficavam os que não cabiam no teatro, uma verdadeira tropa de malucos-beleza, bichos-grilo, músicos anônimos, roqueiros de garagem, cocotas e mais de tudo um pouco, numa verdadeira estação de trem sofrendo de insônia e de sonhos vivos.
São irreversíveis estes momentos. Assim como todos. Porém os caminhos foram certeiros. Estes, sim, podem e devem retornar, servindo outras gerações, refazendo mais gente boa, pois artistas nunca foram demais, há uma grande escassez, não por falta de talentos. Faltam palcos e estações como laboratórios de vida, contra esta boçalização da música de massas e na hiper-sexualização do samba.
Que retornem os trens e os micro-espaços culturais! Que brotem outros Liras com mais frutos e flores em todas as estações!
Sem bairrismos, pois foi circulando pela terra de trem que nos tornamos sem divisas e mais universais, além do que a física veio comprovar com seus astrônomos que, “um objeto jogado a OESTE vai mais longe por causa da rotação da terra”. Assim, a Vila Madalena sempre se valeu, talvez, por este fenômeno, lançando-se à frente como zona oeste do mapa deste planeta. Que surjam mais Arrigos, Premês, Itamares, Tetês e Tatit’s para contemplarmos. Olhai os lírios da Vila.

Em tempo: O pé de amora da rua Harmonia com Wisard está carregado e a amora tá docinha…

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