“Non Ducor, Duco”

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Pedro Costa

Sempre neste instante, o ar fica mais frio e leve. Vê-se o sol alaranjado apenas no topo dos arranha-céus e nas copas das árvores mais altas da Vila Madalena. Pardais, andorinhas, rolinhas e sanhaços gorjeiam nas partes ainda úmidas e escuras da pouca vegetação urbana. O murmúrio dos motores, aos poucos sobrepõem-se aos outros, enquanto as luzes dos postes ainda acesas vão deixando a noite recente, apagando-se. Pequenos estalos de entregadores de jornais lançam sobre muros e portões as notícias do dia que acabou. Começam as primeiras freadas metálicas dos ônibus carregando mais gente a cada parada. Aviões puxam nos céus a cortina do novo dia. Neste súbito instante, onde tudo isso acontece muito rápido, surge um afiador de facas que passa pela rua soltando um silvo breve de um apito em extinção. Bom dia, São Paulo.
Ainda na rede, continuo balançando os meus pensamentos. Faço um feriado na minha alma. Assim a cidade fica mais tranqüila. Ela torna-se a rede que me acolhe. São Paulo agora é afetiva. Penso o quanto gosto dessa cidade e o quanto dela detesto, esqueço. Este é o mês do seu aniversário.
Washington Luiz, então prefeito de São Paulo no início do século passado, abre um concurso público para a criação do brasão ou escudo da cidade. Guilherme de Almeida, recém formado na faculdade do Largo São Francisco, ganha o certame e para o símbolo cria o lema “Non Ducor, Duco” que vem afirmar o mito da cidade que crescia independente e soberana como todo hino ou bandeira: “Não sou conduzido, Conduzo”.
Nascia o símbolo ufanista da locomotiva. A cidade que “puxava” as outras. Essa não é a minha cidade. Talvez, nem a nossa. Cada um pinta seu quadro como quiser. A São Paulo que gosto está em foto branco e preto. À noite os paralelepípedos refletem a lua e seus néons roubam o brilho das estrelas compondo um mosaico de poema concreto. A minha cidade está na Vila, São Paulo de Piratininga. Neste postal, que a vejo, quem passa sobre sua paisagem de prédios é o aviãozinho do Antônio Landi, o primeiro aviador da Vila Madalena. Quem dança nas calçadas é o dançarino Miguelzinho, nosso mestre-sala. Aquele que faz serenatas é o querido João Carlão, o João da Flauta, o elegante alfaiate Antônio Regina, risca os tecidos para dançarem nos salões do Fubá e da União Operária. São Paulo são pessoas. É o Badaró caindo ainda de pára-quedas pela Vila, enroscando-se em árvores e telhados, caindo no campo de futebol em pleno jogo, apanhando das torcidas. São Paulo são as fotos do Adilson Zuppo, os adereços do Zé Eduardo no cemitério São Paulo, as histórias do Vadão, ilusão e utopia de cada um conduzindo como a quer. Feliz Aniversário, quatrocentona desvairada.

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